nossa vida sem a nalva - parte II

eu ficava muito abismada com a reação das pessoas nos estados unidos quando eu levava alguma comida preparada por mim. ou quando cozinhava em casa e amigos vinham e reagiam do mesmo jeito que eu não conseguia entender. ooooooooh, is it homemade? - era mais ou menos sempre isso. sim, era feito em casa. ooooooooh!

bolo de tapioca que nunca fiz nos EUA, mas aprendi a fazer dia desses

anos e mais anos se passaram. especificamente, uma década e meia. e hoje eu entendo perfeitamente por que eles babavam de alegria e prazer ao comer algo que eu ou meu então marido tínhamos feito. e podia ser qualquer coisa. um bolo de maçã. ooooooooooh! um frango no forno com shoyu. oooooooh! um brigadeiro. ooooooooooooooooooooooooh!
faz um ano que vivemos sem a santa nalva. para quem não sabe, a nalva trabalhou na minha casa desde que a minha filha era bebê. não sou boa com datas - ou não acho importante lembrar de datas, na verdade. mas a nalva começou a trabalhar na minha casa uns dias antes de eu me separar. e ficou me ajudando com as crianças até elas não precisarem mais de ajuda. quando o meu filho foi morar com o pai dele, no interior, e a minha filha aprendeu a voltar sozinha da escola. então a nalva não precisava mais nem chegar cedo, nem buscar ninguém na escola, nem ficar até a hora que eu chegasse do trabalho. as crianças já sabiam fazer a lição sem receber ordens, já sabiam esquentar a própria comida e fritar um bife. já sabiam tomar banho e colocar o pijama e esperar a mãe chegar. 
a nalva foi trabalhar na casa da thais, que estava grávida do primeiro filho, o caetano, bem quando eu comecei a pensar que pagar para a nalva ficar na minha casa sem precisar cuidar das crianças já crescidas era uma bobagem. e como se fosse um conto de fadas, estamos vivendo felizes desde então, a thaís com a nalva e eu sem ela.
quando a nalva foi embora, eu pensei em escrever uma série de textos sobre ela. seria assim: "a nossa vida sem a nalva - parte 1", a nossa vida sem a nalva - parte 2" and so so on. mas eu não consegui. escrevi o primeiro texto um ano atrás, e só agora escrevo o segundo. deixar de ter uma pessoa em casa que ajuda todos os dias e passar a fazer tudo sozinha com a ajuda das crianças é uma experiência quase inexplicável. na época, eu trabalhava em um escritório todos os dias, o dia inteiro, com horário. isso quer dizer que não tinha horário flexível nem dia de trabalhar em casa. a escola onde a minha filha estudava ficava no fim do mundo. e o meu filho morava no interior e só vinha pra nossa casa às sextas-feiras, para ir embora no domingo.
meses depois, meu filho voltou para casa e eu fui demitida. ou seja, passado um ano, muita coisa mudou. ah, as crianças também não estudam mais no fim do mundo. agora, em vez de sair de casa às 6h15 para pegar uma carona e chegar à escola às 7h10, eles vão andando pra escola. saem de casa às 7h e chegam sempre antes das 7h30, quando a aula começa.
eu acho um saco fazer tabelas com tarefas. mas dia desses transformei a lousa da parede da cozinha em um tabelão "quem faz o quê". não temos mais frases inspiradoras do mestre zen Thich Nhat Hanh, mas quem lava a louça, quem leva o lixo e os horários de uso de parafernálias que têm tela (celular, computador e quetais). claro que a tabela não resolve, mas ajuda. tudo dá mais trabalho do que eu jamais imaginei, mas assim é que é. criar filhos é diferente de ter filhos e fazer tudo por eles.
o ambiente não é totalmente harmônico. ah ah ah. as crianças reclamam (acho que) todos os dias. "ai que saco", "ai que droga" e "já vou" são as top 3 da casa. e eu me concentro para não reclamar o tempo todo por ter de pedir ajuda de 3 a 5 vezes - em dias de sorte - para algo ser feito.
meu filho me conta do amigo em cuja casa trabalhar M. ela é uma mulher maravilhosa, que cuida do garoto de 15 anos. acorda o moleque, cuida pra ele não se atrasar pra escola, prepara a comida do almoço e checa se ele comeu direito, vai chamá-lo depois da soneca da tarde e prepara o lanche. não sei de mais detalhes, mas me parece de M é a babá do garoto. o sonho do meu filho é ter M na vida dele.
eu acho graça. 
vivemos em um país em que mães não têm nenhum benefício "de mãe" no trabalho. pra piorar, em um país em que mulheres ganham muito menos do que homens, as mulheres normalmente têm de "mostrar que estão trabalhando muito" no escritório, só pra ninguém dizer que fulana não trabalha tanto porque tem um ou mais filhos. e então temos as santas, a santa nalva, a santa M, que cuidam dos nossos filhos enquanto estamos no trabalho. que por sua vez também contam com a ajuda de outras mulheres para cuidar dos filhos delas.
mas chega uma hora em que os filhos já sabem fazer muitas coisas. 
quando eu tinha uns 12 anos, eu idolatrava um garoto que estudava na mesma escola e também na mesma escolinha de inglês que eu. ele fazia coisas que eu não via ninguém fazer: ficava na fila no posto bancário da escola pra pagar a mensalidade, ia pra escola e pra aula de inglês andando, e um dia soube consertar o gravador da professora de inglês que não tava tocando a fita K-7 para fazermos um exercício de "listening". ele pediu à professora um cotonete e álcool e habilmente limpou o cabeçote do gravador. e pim!, a fita K-7 rodou e fizemos a nossa aula. isso foi na década de 80, quando gravadores e fitas K-7 eram os meios mais comuns de se escutar música.
dia desses eu fiquei pensando: quem eram os pais do rafinha, esse garoto descolado que parecia saber tudo o que eu ainda não sabia, apesar de nós dois termos a mesma idade e cursarmos a mesma série da escola? fiquei pensando também em como eu estava criando dois "rafinhas" na minha casa. 
quando a nalva foi embora, eu tinha medo de que a minha filha não fosse gostar da minha comida. quando ela dizia que a lentilha que eu tinha feito estava uma delícia, eu quase chorava de alegria. agora já estamos todos acostumados e felizes com a minha comida. e eu vou fazendo comidas novas e estou cada dia mais feliz de ficar trabalhando com alegria na cozinha. acho a minha comida a melhor comida do mundo. coisa de louca.



as verduras de todo dia, que eu acho tão lindas que acabo fotografando

ensinar os filhos da gente a fazer as coisas de todo dia é o que mais dá trabalho na vida. sem dúvida nenhuma. roupas precisam ser lavadas, estendidas, recolhidas, dobradas. camas precisam ser arrumadas, e os lençois precisavam ser trocados. verduras e cereais precisam ser comprados, guardados e preparados para haver comida na mesa. louças têm de ser lavadas e secadas e guardadas. bolos têm de ser batidos e assados. as janelas têm de ser abertas todos os dias de manhã para o sol e o vento entrarem. mas têm de ser fechadas à noite. e assim todos os dias. 
quando meus filhos não estão reclamando (sim, esses momentos existem), eles fazem as tarefas com alegria. e quando eu consigo prestar atenção na alegria deles, tenho a impressão de que a nossa casa é o lugar mais feliz do mundo. e por instantes consigo largar a loucura da casa-limpinha-perfeita-e-filhinhos-obedientes-e-educados.
a coragem é um dos presentes que ganhamos na vida e que, como todo presente, temos de saber apreciar.

se não há lama, não há lotus

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