o domingo de amélia

amélia acordou e viu a hora no despertador que fica ao lado da sua cama. passava das 9h. nada mal para um domingo.



ela era uma mulher comum. e como muitas mulheres comuns, achava muito bom poder acordar sem o ti-ti-ti do alarme do seu despertador, que a acordava todas as manhãs, de segunda a sexta.
como uma mulher comum, amélia cuida da sua casa. ela é o que o IBGE chama de responsável pelo domicílio. e, como tal, ela não só paga todas as contas da casa, como também cuida de toda a casa. e no domingo não foi diferente.
a regra que amélia instituiu na sua casa, "usou lavou", que deveria fazer com que a pia da cozinha não ficasse com pilhas de louças, não funciona todos os dias. então a primeira coisa que amélia fez naquele domingo ensolarado foi dar um jeito na pia tomada da louça. ela não gostava de tomar café quando a cozinha parecia um campo de batalha.



a segunda tarefa do dia foi colocar roupas na máquina de lavar.
quando a cozinha tinha se transformado em um lugar civilizado, amélia sentou-se para tomar o café da manhã. lembrou-se da carona da filha, que estava em uma festa muito muito longe da sua casa. mandou algumas mensagens para algumas mães cujos filhos eventualmente iriam à mesma festa que a sua filha. e foi estudar um exercício de mindfulness que dará para um grupo de crianças na escola onde a sua filha estuda - uma tentativa de auxiliar o tutor, que diz levar muitos minutos para conseguir fazer os alunos ficarem atentos.
só duas coisas haviam sido planejadas para o domingo: dar uma caminhada e meditar.
enquanto lia o exercício, que estava em inglês, e fazia algumas anotações ao lado de palavras cuja tradução tem de ser precisa, amélia escutou o barulho típico de alguém passando mal no banheiro. por passando mal entenda vomitando.
amélia estava só com o seu filho em casa. a sua filha estava na tal da festa na casa de uma amiga que mora muito, muito longe. amélia correu para o banheiro, onde encontrou seu filho. sim, ele estava vomitando.
amélia é uma mulher comum, que não dá ataque por qualquer coisa. como por causa de uma pessoa vomitando. e então ela fez as coisas que qualquer mãe faria ao ver um filho vomitando: preparou uma bolsa de água quente para aquecer a barriga que doía, buscou a camiseta do pijama para o filho não ficar com frio, colocou um balde ao lado da cama para prevenção de danos, preparou um chá para quando o filho parasse de vomitar.
está tudo bem?, perguntou. ele respondeu que sim. então amélia poderia sair para a sua caminhada. já era perto do meio-dia, o sol estava escaldante, mas isso não tinha a menor importância.
amélia, sendo uma mulher ordinária, todos os dias pensa no almoço da sua pequena família. nesse domingo ela não tinha pensado em nada, porque aos domingos pode-se comer mais tarde, é um dia em que ela normalmente não trabalha e no qual os seus filhos não vão para a escola. mas os planos foram feitos rapidamente depois de ela encontrar o filho passando mal no banheiro: era dia de canja.
na volta da caminhada, ela passaria no mercado para comprar cenouras e batatas. como tantas e tantas mulheres, amélia tinha um senso de vamos-resolver-isso-agora, que deve ser um senso muito comum em mulheres responsáveis pelo domicílio.
andando no sol, com o seu chapéu de abas largas, amélia lembrou-se de quando era jovem e sonhava em ter companhia para andar ou correr ou nadar. esse sonho a acompanhou por anos e anos, o que deve ser bem comum às mulheres que fantasiam bobagens românticas como essa. no fim, ela acabou acostumando-se à prática esportiva solitária e acabou gostando. gostando, não. adorando.
de volta à casa, amélia rapidamente preparou a canja, certa de que o corpo do seu filho necessitava de uma comidinha leve e feita com amor.



almoço pronto e o filho, mesmo passando mal, não largava o seu celular. músicas, mensagens e gargalhadas. amélia ficou incomodada. sugeriu ao filho que largasse o celular para poder descansar. mas ele, com a pele mais branca do que costuma ser e olheiras cinza escuro, disse que estava ótimo e que não precisava descansar.
amélia era uma mulher paciente, como costumam ser as mães que são responsáveis pelo domicílio. mas aquilo era demais para ela: o filho vomitando, correndo ao banheiro, com a barriga doída, grudado no celular. ou você me dá o celular agora, desligado, e descansa, ou eu não vou ficar cuidando de você, disse.
o filho achou que aquilo era uma chantagem. não, não era. é como você dizer a quem está fazendo dieta que não pode comer um pote inteiro de sorvete, explicou amélia, com a paciência que ela vem desenvolvendo há anos, desde que nasceu.
o lado bom de poder estabelecer limites é que poupa raiva e gritos. amélia sabia disso. saiu do quarto e não falou mais com o filho. pôde almoçar e ver um filme e responder emails sem perturbação.
amélia já sofreu muito, como todas as mães que são responsáveis pelo domicílio. na verdade, ela nem sabe como deu conta. aliás, ela tem a impressão de que nenhuma mãe responsável pelo domicílio sabe como dá conta: essas mulheres simplesmente vão lá e fazem. sem pensar. como ela própria, reflete amélia em sua simplória filosofia.
amélia acredita que se todas as mulheres fossem criadas para ser responsáveis pelo domicílio, o mundo seria muito diferente. primeiro, pensa ela, as mulheres sofreriam muito menos, porque não dependeriam de ninguém. segundo, nenhuma mulher ficaria casada somente para não precisar ser responsável pelo domicílio. as mulheres só seriam casadas, segundo amélia, enquanto estivessem num relacionamento bom para as duas partes.
amélia muitas vezes acha que enlouqueceu. como quando fala essas coisas nas quais acredita para as suas amigas que são casadas e estão longe de ser responsáveis pelo lar. é engraçado, pensa ela: só vivendo algumas experiências para conseguir ter umas ideias que não são muito comuns nem muito aceitas.
amélia foi criada para casar, ter filhos e viver feliz para sempre. mas os planos que os pais dela tinham não deram certo. isso não é um problema para amélia, que nunca correspondeu aos planos dos seus pais. aliás, será que alguma mulher feliz seguiu os planos dos pais? ou os planos de qualquer outra pessoa? amélia tem certeza que não. 

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