sobre a difícil arte de deixar ir - parte II

clean machine. eu ia escrevendo essas duas palavras toda vez que organizava minha agenda. meses se passavam, e eu sempre colocava no pé da folha do meu enorme caderno: clean machine. limpar a máquina era o que eu tinha de fazer para ter somente os arquivos necessários. mas, para fazer essa faxina no meu computador, seriam necessárias muitas horas. duas tardes. talvez três.

tudo o que não é urgente é mais difícil de ser feito. e deve ter sido isso o que me levou a escrever inúmeras vezes "clean machine" na minha listinha semanal de atividades. 




minha máquina, essa mesma que precisava de faxina, é lerda. é nova e é lerda. até que contatei o fabricante e descobri que a máquina não fazia algumas atualizações. eu tinha de ir até uma assistência técnica. mas, para melhorar as coisas e acabar ou diminuir meu mau humor colossal, a assistência técnica fica a menos de 500 metros da minha casa. 

coloquei a máquina na mochila e fui andando bem, mas bem devagar. álcool gel, medição de temperatura, qual o serviço que a senhora está procurando?, aqui a sua senha. mal sentei e minha senha apareceu na tela da TV que fica exibindo vídeos sobre a performance dos produtos samsung e os números das senhas para clientes entediados sentados naquelas cadeiras de lugar onde sempre se espera. 

descrevi o problema para a moça. a senhora fez o backup?, ela me perguntou. vamos zerar a sua máquina. sim, eu sempre faço o backup, respondi. mas eu tinha trabalhado dois ou três dias depois de fazer o backup, 

senti o chão se abrindo e eu afundando num buraco profundo e escuro. a moça continuava a fazer o trabalho dela. tem a nota fiscal?, sim, aqui está. enquanto ela ia preenchendo tudo o que tinha de ser preenchido, eu seguia sentindo meu mal-estar de dependente de um computador. 

saí de lá e voltei andando desolada. três a cinco dias sem máquina. a contar dali a três dias, porque era uma sexta e sábado e domingo não entram na conta.

cheguei em casa em dúvida. não sabia se tinha feito a coisa certa. por que eu não tinha ligado a máquina e enviado por email os arquivos nos quais eu tinha trabalhado nos últimos dias? por que não voltei pra casa e limpei a máquina e voltei na segunda para o conserto?

eu não tinha feito nada. só tinha falado para a moça que eu tinha feito backup e que sim, eles poderiam zerar a máquina (o que depois teve de ser provado com a assinatura de um termo, porque a samsung segue a legislação brasileira que proíbe o conserto de aparelhos com dados do cliente, me explicou a moça).

a sensação de que eu estava perdendo algo ficava me perturbando internamente. um desconforto. uma tontura. e eu seguia sem sentir o chão. 

no meio da noite acordei e fiquei pensando na minha máquina zerada. o que eu poderia perder além de uns arquivos? e, afinal, a faxina da máquina estava sendo finalmente feita. nada de organizar tudo, nada de ficar horas revendo arquivos. adeus pra todas as pastas e todas as fotos e todas as senhas salvas.

no dia seguinte voltei a trabalhar, desta vez escrevendo em uma folha do meu enorme caderno. organizei a proposta de trabalho que eu tinha perdido no computador, e por um momento pensei 'ah, quando a máquina voltar do conserto eu reviso o arquivo que está lá'. logo me dei conta de que eu estava alucinando, não havia arquivo para revisar, eu tinha de escrever tudo de novo. 

a máquina voltou. eu finalizei a proposta, que ficou bem boa. eu sumi com vários emails ao ler as mensagens no celular enquanto estive sem a minha máquina, que é uma coisa que eu faço muito raramente. e eu resgatei os arquivos que estavam felizes no HD em que faço o bakcup e, finalmente, organizei as pastas, deletei arquivos, editei arquivos redundantes. 

é surpreendente como desapegar das coisas é um exercício diário. em todos os dias das nossas vidas, temos de tirar o que não presta, focar no que é importante, e não nos agarrar a nada. e o que mais me confunde é como isso é um paradoxo: eu me esforço, todos os dias, para deixar ir . 

 * parte II porque um anos e 11 meses atrás escrevi um texto com o mesmo título. 

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