o carroceiro

é uma vizinhança rica. não uma riqueza de beleza, de bondade, de alegria. é uma vizinhança rica de dinheiro.

basta eu atravessar a grande avenida para chegar lá. é um lugar bom para andar, porque as ruas não têm buracos nem muitos carros, há muitas árvores grandes e belas e muitos passarinhos também. tem uma pequena praça onde ainda encontro bancos para sentar e equipamentos básicos para me alongar - o trepa-trepa no parquinho das crianças e uma geringonça instalada pela prefeitura e patrocinada por um banco onde há barras para esportistas se dependurarem.  


o céu sobre a rica vizinhança 

tenho ido cedo andar. e ontem me deparei com um carroceiro. ele ia à minha frente, puxando seu carrinho - seria um carro com tração animal, mas na cidade onde moro é proibido, então é um carro com tração humana, o que, pra mim, é um pouco mais doloroso. eu não enxergava todo ele, só partes deles. os pés e a cabeça. dava pra ver que era um homem velho, porque ele tinha cabelos brancos. e que era um homem preto. eu via os calcanhares dele pisando no chão, porque ele estava de chinelos.

eu tenho profunda admiração por esses homens. às vezes, mulheres. e raramente casais. que são os heróis da reciclagem de lixo neste país que eu moro, em que governos não dão a menor importância para isso, para o nosso lixo.  

eu fiquei olhando os calcanhares daquele homem velho e fiquei tocada. comecei a andar mais devagar, e era muito bonito de ver o ritmo com que ele andava, puxando a sua carroça. ele parou e eu segui, dando a volta na pracinha. quando passei perto dele de novo, ele estava arrumando algumas barras de metal que haviam sido jogadas em uma caçamba. nessa vizinhança rica há sempre muitas caçambas. as pessoas que moram ali fazem muitas obras. e muitas destroem casas por inteiro, para construir outras, maiores e novinhas em folha.

ele limpava aquela barra com concentração e dignidade. tenho certeza de que ele sabe da importância do trabalho dele. sim, porque todo trabalho é nobre, mas nem sempre sabemos que o nosso trabalho é nobre. mas ele sabia.

mais uma volta e ele limpando os materiais que ele estava catando da caçamba para levar para reciclar. 

e na volta seguinte eu o encontrei de pé, com os dois braços apoiados na carroça, que ele havia manobrado e estacionado num recuo onde carros paravam quando não vivíamos em uma pandemia e a praça era sempre cheia de crianças com suas babás, e vez ou outra com seus pais. ele fumava feliz. não sei se quem nunca fumou consegue enxergar a beleza de ver alguém fumando. 

ele fumava tranquilo. eu dei bom dia a ele, talvez ele tenha visto que meus olhos brilhavam de admiração. eu parei de fumar tem uns anos, mas eu gosto de ver pessoas fumando, e gostaria de sentar num banco da praça e fumar também.

eu provavelmente nunca saberei o que é puxar uma carroça usando chinelos pelas ruas tumultuadas de são paulo. e isso me faz admirar mais ainda este homem. um dos meus trabalhos eu faço sentada, que é o de escrever. eu passo horas do meu dia sentada. às vezes mais de dez horas. então eu caminho e corro pra tirar do meu corpo dores e durezas. o que deve ser patético para um homem que, como este carroceiro, passa o dia andando e fazendo força, puxando a sua carroça. 

eu sempre cruzo com pessoas admiráveis. mas nunca digo isso pra elas. acho que eu devia dizer. 




 

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