o dia dos milagres

abri os olhos e vi que tinha luz. fiquei olhando pro pequeno corredor e pensei que alguém estivesse acordado na sala, e com a luz acesa. mas a luz que eu enxergava da minha cama não era uma luz de lâmpada, era uma luz do dia.
olhei no celular e vi 6:18. vi também na tela escrito "alarme". e percebi que tinha perdido a hora.
eu acordo todos os dias às 5h. isso já faz alguns anos - começou quando meus filhos foram estudar na roça, que é como eu chamo carinhosamente o bairro onde fica a escola deles. também conhecido como o "o fim do mundo".
pulei da cama o mais lentamente que pude e fui chamar as crianças com o máximo de doçura que consegui. eu estava saindo da cama na hora em que costumamos sair de casa. e um filminho passou pela minha cabeça - lembrei das milhares de vezes que acordei e tive de sair correndo. tipo a minha vida inteira, desde a infância até uns 30 anos (?).
enquanto a água esquentava na chaleira, tomei um banho o menos loucamente que pude. percebi que não conseguiria comer correndo, mas piquei uma maçã. pelo menos uma maçã dava pra comer sem correr.
todos ficamos prontos, e entramos no carro vestidos, penteados, dentes escovados, lanches preparados e acondicionados dentro das mochilas.
a estrada até a roça estava tranquila, e milagre dos milagres, as crianças entraram em suas salas de aula no horário.
minha filha ficou desapontadíssima - seria a primeira vez que ela poderia dizer pra professora "minha mãe perdeu a hora", frase que, segunda ela, as crianças usam à exaustão, o que causa desconfiança não só na professora como também nos amigos que ouvem a mesma desculpa dia após dia.
eu tentei disfarçar, mas era difícil. eu estava aceleradíssima. na verdade eu estava em êxtase: tinha conseguido ao menos uma vez na última década perder a hora; depois consegui fazer tudo o menos corrido possível; e por fim o primeiro milagre do dia: tínhamos chegado na escola no horário.
...
fui até a cantina tomar um cafezinho, me sentei e fiquei conversando. edna, educadora da unifesp, contava suas histórias maravilhosas. anselmo, com o sotaque português fortíssimo mesmo depois de quase duas décadas morando em terras brasileiras, nos contava causos engraçadíssimos e por vezes ininteligíveis. mariza, a avó torta do gabriel, dava risada conosco, com seus belos cabelos muito brancos que quase não combinam com seu rosto jovem.
quando finalmente me levantei para sair da escola, entrar no carro e rumar da roça pra cidade, olhei no relógio e me dei conta de que não pegaria o túnel. o caminho que passa por debaixo do rio pinheiros e me leva até o escritório mui rapidamente tem prazo de validade. todo dia o túnel no sentido roça-cidade fecha às 9h15. o relógio do meu carro marcava 8h38 quando liguei o motor. pra quem já tinha conseguido se comportar com um atraso no começo do dia, pensei, era preciso respirar e "perder o túnel" com o mínimo de felicidade.
e taca-le pau neste carrinho.
olhei a estrada, e pensei "nossa, esse horário é muito bom". eu andei um, dois, três, quatro quilômetros. a 90 km/h, coisa impensável àquela hora. quando escuto no rádio que a estrada estava interditada atrás de mim. e, por isso, o trecho por onde eu estava passando estava muito, muito vazio. cheguei ao escritório em menos de 40 minutos. um recorde histórico. era o segundo milagre do dia.
...
o dia seria longo. eu havia sido convocada para uma reunião no fim da tarde, e estava indo para o escritório para finalizar um site. estranhamente consegui dominar meu mau humor, que entre outros motivos é provocado pela exaustão - esta, por sua vez, provocada pelo excesso de trabalho.
trabalhei muito, e também dei muita risada. almocei com amigos queridos, falamos das merdas da vida, e terminei o tal do site.
era hora da famigerada reunião. que foi longa, cansativa, triste e dura. e aí veio o terceiro milagre do dia: eu consegui não dizer o que eu pensava, falar pouco, ser delicada e morrer de sono - coisa que só acontece com quem consegue relaxar.
...
estava tensa com o horário. tinha de chegar em casa para render a doce nalva. pensei nas crianças, na lição, no banho que eles não teriam tomado quando eu chegasse em casa. respirei e pensei que depois de tantos milagres eu bem que podia chegar em casa com suavidade. e foi o que eu fiz.
eu estava triste, exausta, faminta. mas pensei que podia ser doce. sempre digo que gentileza gera gentileza, mas tenho certeza de que doçura gera doçura também.
ninguém estava dormindo quando cheguei. tampouco tinham terminado a lição.
mas eu me lembrei dos milagres, lembrei também do poder da respiração e da presença. lembrei que posso ser íntegra mesmo estando exausta, e que meus filhos odeiam meus gritos na mesma intensidade que eu odeio os gritos deles.
então eu não gritei, não reclamei, não falei mal de ninguém. disse com doçura que tinha saído de uma reunião longa e dura, eles foram pra cama. a santa nalva foi embora.
e eu me sentei na cozinha pra jantar e pra ligar pra minha irmã, coisa que nunca faço. conversamos por quase uma hora. eu fiquei com saudades da minha mãe, senti uma dor absurda no corpo. e me dei conta de que o último milagre do dia tinha acontecido. eu tinha chegado em casa e não tinha ficado louca com as crianças que nunca fazem o que a gente acha que elas têm de fazer.
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foi o dia mais milagroso de que eu me lembro de toda a minha vida.
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até agora não entendo o que aconteceu hoje de manhã. o despertador estava ligado para as 5am. mas não sei se ele tocou e eu o desliguei sem me dar conta; ou se foi meu anjo, que sabia que eu precisava de um dia assim para entender que a vida não é tão dura como eu acho que é.

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