sobre mulheres que não param

ela era do tipo que nunca ficava sentada. nunca.
a impressão que eu tinha, conforme eu ia crescendo, era que ela tinha alguma coisa na bunda. era isso o que diziam pra nós, crianças, quando um coleguinha não ficava sentado na classe: "fulano tem um furúnculo", ou "fulano tem um percevejo no bumbum" - neste caso, acho que se referiam ao objeto que usamos para fixar folhas num quadro de cortiça. e eu achava que era isso o que a minha mãe tinha - alguma coisa na bunda, que a impedia de ficar sentada.
muitos e muitos anos depois é que eu fui entender por que uma pessoa não consegue ficar sentada. nós estávamos hospedando duas meninas de 11 anos num fim de semana. faz parte da política do Cisv, que promove acampamentos de crianças e adolescentes ao redor do mundo: famílias hospedam seu filho quando ele viaja, e a contrapartida é você hospedar crianças - gringas ou brasileiras - quando os acampamentos ocorrem no brasil. dessa vez, mia, americana, e filippa, sueca, passaram dois dias conosco.
já tínhamos hospedado outras crianças, e sempre tínhamos nos divertido muito. kike e nacho, da costa rica, depois leo e fred, da finlândia e da noruega, respectivamente. mesmo com o DDA do fredrick, que tomava uma medicação fortíssima, além de não me obedecer até a hora em que passei a gritar com ele como se grita com um filho, tudo havia sido legal. e com as crianças do vietnã também demos risadas, jogamos banco imobiliário e descobrimos que adultos vietnamitas podem ser mais baixos do que crianças de 11 anos (a líder das crianças asiáticas parecia uma menina de, no máximo, 8 anos).
mas com a filippa e a mia foi diferente. elas eram quietas. não falavam nada, nem por palavras, nem por expressões. ficavam horas no quarto, cada uma escrevendo em seu diário. e assim foi na noite de sexta, no longo sábado e no domingo.
eu perguntava se queriam tomar sorvete, e elas diziam "it's ok". perguntava se queriam suco, e elas mexiam com os ombros e não falavam n-a-d-a. então eu as servia e elas tomavam para logo, timidamente, perguntar se podiam pegar mais. perguntei se queriam dar uma caminhada, e uma delas disse "I don't care". fomos dar a tal da caminhada, e em duas horas não descobri se foi legal ou se foi horrível o nosso passeio.
era insuportável. eu não consegui decifrar, nas 48 horas em que elas ficaram conosco, se estavam felizes, satisfeitas, tristes ou horrivelmente entediadas. talvez a experiência de ficar em uma casa de família com uma amiga recente - elas tinham se conhecido no acampamento, 15 dias antes de chegar à minha casa - fosse excessivamente emocionante para duas meninas de apenas 11 anos.
e o que aconteceu durante essas poucas horas em que estivemos juntas? eu não conseguia ficar sentada. eu lavava a louça, arrumava minha cama, organizava qualquer coisa que desse para organizar. sentia uma aflição tão grande que não conseguia parar de fazer coisas. andava freneticamente pelo meu pequeno apartamento, ligada no botão 'automático', demonstração máxima da minha falta de conexão com o meu coração.
e então, enquanto lavava uns pratos, me dei conta do porquê de algumas pessoas, muitas vezes mulheres, não conseguirem ficar sentadas para conversar, dar risada, ler um jornal ou não fazer nada. porque não conseguem ESTAR.
eu não consegui ESTAR com as meninas, porque a aparente indiferença delas me deixava muito aflita. fico aqui pensando no que causava horror à minha mãe a ponto de ela não sentar ao meu lado nem por meia hora quando eu a visitava durante um fim de semana ou um feriado. a desculpa era ótima: ela sempre tinha "algo para fazer". e a gente sempre tem "algo a fazer" quando não aguenta o que estamos sentindo.
eu às vezes tenho falta de ar. outras vezes fico aflita, quando fico mais de 10 horas sentada trabalhando, e parece que uma força do além vai arremessar o meu corpo, com a cadeira, para o espaço - o que seria um alívio, na minha fantasia. mas não conseguir sentar foi uma novidade pra mim. devo agradecer às minhas pequenas hóspedes. sem a filippa e a mia talvez um dia eu morresse sem descobrir de onde vinha a aflição da minha doce mãe, que só ficou sentada dois dias antes de morrer, quando a morte já estava pertinho, e com sua força a obrigou a sossegar.

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