'minha mãe é viciada em celular'

eu tenho duas amigas mais jovens que eu. uma tem 6 anos, a outra, 7. moramos perto, e elas vêm me visitar de vez em quando. como elas são super hiper ultra jovens, elas tocam a campainha e esperam alguém abrir. elas não me avisam com antecedência. então, quando a campainha de casa toca, mas o porteiro não me avisou pelo interfone que a dona judith ou a dona paula estão subindo, eu sei que são as minhas amigas muito mais jovens do que eu que estão na porta.
às vezes eu posso recebê-las. e então as convido para entrar e ofereço algo para beber e algo para comer. como elas são mega jovens, elas respondem com sinceridade. e a resposta é s-e-m-p-r-e sim. querem bolo? sim! querem uvas? sim! querem um copo de água? sim! querem um pedaço de chocolate? sim! se por acaso elas batem na porta quando eu estou trabalhando, eu digo pra elas que aquela não é uma boa hora, que eu tenho de trabalhar, e elas sorriem pra mim, dizem tchau e vão embora.

florzinha no meio fio da av. rebouças


nós nos damos muito bem, e conversamos sobre diversos assuntos. a horta que eu mantenho no prédio, como plantar uma sementinha, quando vamos tomar um banho de mangueira. essas coisas interessantes que pessoas que estão felizes da vida conversam.
dia desses elas bateram na porta, e eu não estava trabalhando. convidei minhas pequenas amigas para entrar, busquei cadeiras adequadas para elas sentarem, e ficamos conversando na grande mesa da cozinha. elas comeram bolo, bananas e um pouco de iogurte. e acho que tomaram algo, um chá talvez, não lembro.
o que mais me alegra na nossa amizade é que minhas pequenas amigas falam o que querem falar, e respondem o que querem responder. elas também demonstram grande alegria quando me encontram, não importa a hora, o lugar, a temperatura. nossos encontros são verdadeiramente alegres.
nesse dia, elas comeram as seis bananas que eu havia comprado. e seguiram comendo bolo. como elas comiam devagar e tranquilamente, como pessoas de 6 e 7 anos costumam comer, eu não me importei com o volume cavalar de alimentos que elas ingeriam. elas estavam visivelmente contentes. e então, não sei como, uma delas começa a falar sobre uso de celular.
"meu pai e minha mãe estão sempre no celular. eu conversei com eles, e agora meu pai não é mais viciado. mas a minha mãe ainda é."
uma delas tem um celular que o pai deu pra ela. pergunto se ela liga pras pessoas. "não, meu pai não deixa. é só pra jogar."
e então o assunto seguiu para as melhores marcas de celular, Apple ganhando de longe, mas Motorola também estava no páreo. Samsung não é uma boa opção, me ensinou uma delas. e falamos sobre casas no campo - "a amiga da minha mãe tem uma casa que ela quer vender, mas a minha mãe não tem dinheiro pra comprar". ao que a outra acrescenta: "a minha tem".
e íamos conversando sobre as nossas vidas, sobre o iogurte orgânico sem veneno - "mas então as outras comidas têm veneno?", me pergunta uma delas, ao que eu engasguei e disse que são venenos que a gente pode comer um pouquinho. oh my god.
ter amigas jovens dá um pouco de trabalho, porque temos que acessar o nosso coração sem parar. amigas jovens nos olham nos olhos, e querem ouvir o que a gente fala. amigas jovens se importam conosco, e ficam completamente concentradas na conversa. eu me dei conta disso nesse dia, nessa visita que teve a conversa da "minha mãe ainda é viciada em celular". a frase foi dita com calma e lucidez, o que me deixou muito perplexa.
as crianças não têm dois mundos, nem três mundos. as crianças têm um só mundo, e o nome desse mundo é agora.
eu estou trabalhando em uma editora, e tenho lido textos diferentes todos os dias. em duas entrevistas que eu tive de editar, os entrevistados falam dos mundos em que eles vivem. um deles, brasileiro, mora fora do país há 40 anos. diz que vive em dois mundos: não é mais tão brasileiro, o que pode ser notado no português um pouco truncado, tampouco é norte-americano, afinal ele não nasceu na terra que escolheu para viver faz quase meio século. a outra entrevistada, brasileira, jovem e linda, nasceu "na quebrada" e hoje ganha muito dinheiro. "eu sou a mesma pessoa. só que hoje tenho dinheiro", me contou, na tarde em que fui entrevistá-la. "mas eu vivo em dois mundos, e não pertenço a nenhum deles", me diz. na quebrada, os ex-vizinhos dizem que ela não é dali. e ela diz o mesmo em relação aos lugares onde as pessoas que têm dinheiro - ela inclusive - vão.
eu, que sou brasileira e moro no brasil, num bairro metido a besta de são paulo, não sinto que eu não sou daqui. mas sinto que me divido em muitos mundos. prioridade 1: filhos. ser mãe de dois filhos sozinha é um trabalho digamos, grande. prioridade 2: ganhar dinheiro. sou frila e trabalho às vezes 12 horas por dia, às vezes 15 horas. se eu não ganhar, não tem pão em casa. prioridade 3: cuidar da casa. limpar, arrumar, lavar roupas, cozinhar, checar o que tem na geladeira e comprar o que falta, costurar roupas, fazer comida para o almoço diário. prioridade 4: meditar. prioridade 5: praticar exercícios físicos. prioridade 6: escrever. neste blog, em cadernos, rabiscar poemas. prioridade 7: dar cursos e palestras e práticas avulsas de mindfulness, remuneradas ou não.
cadê o tempo? cadê eu?
vou respirando e desacelerando. sim, eu sei que parece um paradoxo, mas não é. muitas e muitas coisas ao mesmo tempo e uma atenção para andar mais devagar, agir mais devagar, respirar sem faltar o ar.
são muitos os lugares para estar. faço o que dá pra fazer. e me lembro com alegria das minhas mega super hiper jovens amigas sentadas na minha frente, no mesão da cozinha do meu apartamento, conversando tranquila e serenamente comigo. não quero ser viciada em nada, e quero ter o tempo necessário para estar no lugar em que estou sem me afligir. assim como elas.
estamos no mundo, uma hora num lugar, outra hora noutro, mas não estamos fora de nada. ao contrário. mas é preciso estar atento. preciso prestar atenção em mim mesmo pra não me perder nos "tenho ques". pra estar inteira em qualquer lugar e poder me chocar quando uma amiga jovem me falar sobre os horrores do celular.
eu tenho uma alegria gigantesca por encontrar tanta gente maravilhosa, todos os dias, na minha vida. e as minhas duas amigas são um belo exemplo.


o cheiro é de dama da noite, mas não sei se esse é o nome

ps - eu gostaria de colocar uma foto que tirei com as minhas amigas, mas por uma questão de preservação das meninas, escolhi colocar fotos de algumas flores que enfeitam e perfumam a cidade cinza nesses dias incrivelmente quentes de janeiro.

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