os sábados, o coronavírus e o bolo de limão

eu adoro sábados. mesmo trabalhando em casa todos os dias, os sábados são dias diferentes dos outros. não tem despertador pra acordar ninguém, e todos os três moradores da casa dormem até o sono terminar. e apesar de eu ficar em casa todos os sete dias da semana, aos sábados o ritmo é outro. não há escola, não há horários, não há emails para responder e às vezes passo o dia todo sem receber uma única mensagem de whatsapp.



hoje não foi diferente. acordei quando ainda estava escuro. vim pra sala fazer minhas práticas de mindfulness. fui pra cozinha tomar meu café da manhã. passei roupa e acabo de colocar no forno um bolo de limão.
mas entre uma atividade e outra, resolvi dar uma olhada nas notícias. uma amiga faria um bazar na casa dela no domingo, e cancelou. e outra amiga viria para são paulo para participar de uma feira no museu da casa brasileira, e eu queria saber se a feira iria acontecer. não, a feira foi cancelada. e soube que as escolas municipais e estaduais vão parar a partir da próxima semana, por tempo indeterminado.
eu não costumo ter medo. pelo menos não das coisas tangíveis, como doenças. mas lendo sobre o coronavírus senti um frio na barriga. todo tom sem pânico das notícias que eu leio no boletim diário que recebo do New York Times não aparecia no textinho que li sobre as medidas que estão sendo tomadas pelo governo do estado onde moro. voltei pra cozinha pra bater o rico bolo de limão. mas fiquei com o incômodo na barriga. ah, esse mesmo governo determinou que as faculdades também parem, menos as da área da saúde, porque "vamos precisar de profissionais da área da saúde". parecia uma piada, mas não era.
minha filha teve H1N1 no auge da loucura. ela era pequena, tinha algo entre 6 e 7 anos. estávamos de férias na casa dos avós maternos dos meus filhos, em porto alegre. minha mãe sugeria que eu levasse a neta dela ao hospital, apesar de eu estar em contato com o pediatra em são paulo e de ter ido a uma consulta com uma pediatra em porto alegre. ela dormia o dia todo e não comia, e por isso eu sabia que ela estava bem doente. ela era uma criança que devorava dois pratos cheios de arroz com feijão, mas durante os dez dias de H1N1 ela comia meia garfada de qualquer coisa, olhava para mim e dizia que queria dormir. eu a levava para o sofá, e ela adormecia. nada diferente da maioria das doenças que mães enfrentam quando têm filhos pequenos. eu não a levei para fazer exame, porque para mim não faria a menor diferença saber o nome da doença que ela tinha. ela estava sendo cuidada por dois médicos e por uma mãe.
passados vários anos, ano passado foi a vez do meu filho. ele já não era uma criança pequena, e foi muito trabalhoso dar conta dos dias em que ele esteve de cama. ele não conseguia andar sozinho, então eu o levava ao banheiro apoiando o corpo dele, maior e mais pesado que o meu, nas minhas costas. eu sabia quais eram os sintomas do H1N1 e, por isso, não tive dúvidas. mais uma vez não levei o enfermo para fazer um exame de sangue. mais uma vez considerei desnecessário. ele estava sendo cuidado, e ter um exame com um nome de um vírus não faria com que ele ficasse menos dias na cama ou que seu rosto ficasse menos pálido ou que ele tivesse fome.
a simples menção desses episódios sempre faz meu interlocutor arregalar os olhos. temos medo de doenças, temos medo de morrer, e preferíamos passar uma vida num mundo encantado e cor de rosa da barbie. mas o H1N1 é um vírus que seu corpo vai aguentar caso você tenha imunidade.
imunidade, aliás, é a palavra que ninguém está usando nesses dias de pânico coletivo - exceto um vídeo gravado pelo médico chinês Peter Liu, que eu recebi por whatsapp quando o coronavírus estava ainda restrito à China. por que será? por que ficamos tão obcecados com a saúde, com a felicidade, com uma vida bem sucedida, que não nos lembramos de falar da imunidade? por que temos a fantasia de que há remédio na farmácia para todos os males? até para os dias em que olhamos o mundo e enxergamos tudo cinza, sem graça e sem vida? ninguém fala de uma boa alimentação, de horas suficientes de sono, de uma vida com alegria e que seja capaz de nos fazer fortes.
eu não sou médica. e não quero falar de coisas sobre as quais não tenho conhecimento. eu me senti num filme de ficção científica lendo os textos das notícias hoje cedo. e tive a sensação de que informar com objetividade e de forma eficaz está se tornando uma coisa rara. uma tristeza.
por que cancelar as aulas de toda a rede pública no estado de são paulo sem prazo determinado? não tem um período em que evitar aglomerações é indicado? e o governo dizendo que vai fornecer internet "até nos lugares mais pobres". sério? algo tipo você trabalha, não tem com quem deixar seus filhos, eles ficarão em casa não se sabe por quantos dias, mas o governo prometeu internet. é, no mínimo, desesperador.
a atendente da ótica que apertou os parafusos soltos dos meus óculos me contou, ontem, que na escola onde o filho dela estuda todas as crianças estão usando máscara o dia todo. e. segundo ela, o filho chega em casa com o rosto ou as orelhas um pouco vermelhos, machucados. digo a ela que a máscara só é indicada para quem estiver com o vírus ou alguém que esteja cuidando de um doente. ao que ela me responde: "mas eu acho que a escola está certa".
talvez estejam todos corretos. o governador do estado onde moro, a escola do filho da moça da ótica, a minha mãe que queria levar a neta ao hospital. talvez eu esteja viajando. e eu só vou saber disso quando a histeria coletiva se acalmar, daqui a um ano, talvez.
até lá, coragem. muita coragem para todos nós seguirmos vivendo em comunidade, que às vezes mais parece um grande hospício.
e se você vai ficar em casa este fim de semana, porque tudo está sendo cancelado e porque devemos evitar aglomerações, segue a receita do bolo de limão. fácil, rápida e muito gostosa.

BOLO DE LIMÃO

100g de manteiga
1 1/3 xic de açúcar mascavo ou branco
3 ovos
2 xic farinha de trigo
1 colher de sopa de fermento
raspas e suco de um limão

bater na ordem acima os ingredientes em uma tigela. colocar em uma forma untada e levar para assar em forno quente por mais ou menos 30 minutos ou até que você sinta o cheiro do bolo assado e ele esteja dourado.

CALDA
leve ao fogo numa panelinha 1/2 xíc de açúcar e suco de um limão e misture por um ou dois minutos. despeje a calda ainda quente sobre o bolo. se quiser, faça furinhos no bolo usando um garfo antes de jogar a calda. coloque rodelas de limão bem fininhas sobre o bolo com a calda para enfeitar.

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