a quarentena e a dor de barriga

tenho repetido que não tenho medo do que está acontecendo. mas é mentira. eu tenho.
...
eu sinto dor de barriga. igual à dor que eu sentia quando eu era criança e não me sentia à vontade com algo, como ir dormir na casa da minha prima, cuja mãe falava alto e dizia muitos palavrões, o que na época eu achava muito assustador.
todas as sensações que eu tenho sentido, aliás, são infantis. sinto pouca fome, mas muita vontade de comer, tipo criança em frente à mesa do aniversário olhando para os brigadeiros e querendo muito pegar alguns, enquanto adultos dizem com uma voz insuportável que os brigadeiros devem ser comidos depois de cantar o parabéns - e a nossa vontade de pegar o brigadeira vai aumentando vertiginosamente.
também sinto raiva de ter de me adaptar ao que temos para o momento. não posso mais entrar no lugar em que compro verduras, porque os donos do pedaço concluíram que pessoas, mesmo que poucas (o resto fica esperando a sua vez na calçada), escolhendo suas alfaces é algo que oferece risco de transmissão do coronga. então eu não faço mais minha caminhada no sol da manhã para buscar minhas verduras, mas peço alfaces e cenouras por whatsapp para uma empresa simpática que me entrega uma caixa com muitas, muitas bandejinhas de papel enroladas em plástico filme.
mas poderia ser pior. meu amigo que mora na terra do Trump me conta que ele e a família deixam as compras na garagem por QUATRO dias, depois de serem entregues, para só então transportá-las para dentro de casa. ele diz que isso é o indicado lá onde eles moram.
minha vizinha do 13 e eu passamos a trocar mimos. começou com empréstimo de farinha e de creme de leite. depois ela me pediu amaciante e, não sei em que momento, começamos a mandar pedaços de bolo pelo elevador. esta semana tricotei pantufas para dar fim às lãs que eu matinha num saco de pano havia anos, e mandei um par de pantufas feitas com lã de ovelha roxa para a alice, filha da minha vizinha do 13. e agora de manhã recebi pelo elevador uma sacolinha, e dentro dela havia três copinhos com brigadeiro de colher. a sobremesa de hoje está nos esperando na mesa da cozinha. temo que ao fim desse período de claustro compulsório tenha me tornado uma potranca, redondinha.

a cozinha não para: sorvete feito pela minha filha


às vezes me dá vontade de cortar os bolos que temos assado desenfreadamente aqui em casa e bater na porta dos vizinhos para oferecer-lhes um pedaço. mas é contagioso bater na porta dos vizinhos, pegar elevador, tocar no prato de comida que vou oferecer a outra pessoa. e além de tudo, tenho vizinhos que não estão tendo contato nenhum com nenhuma pessoa além daquelas que moram com eles. por contato quero dizer parar na frente da pessoa e dizer bom dia - não me refiro a abraços, beijos nem lambidas.
minha amiga J está sem sair de casa há 28 dias. mas isso foi ontem. então agora já são 29. ela me contou e deu risada. está feliz de poder ficar em casa. diz estar em paz. e a cara dela, que eu vi pela tela do meu computador ontem, é de fato a cara de uma pessoa que está satisfeita.
o ar que eu respiro vai e vem e vai e vem. quando eu digo vai quero dizer vai embora pra longe e me deixa um pouco aflita com a falta que ele faz. e para isso eu tenho usado um pot-pourri de técnicas. rezo mantras deitada no sofá; sento na almofada de meditação para fazer minhas preces diárias e para praticar mindfulness; saio para caminhadas no sol levando na mão esquerda meu colar de rezas e vou recitando mantras por uma hora enquanto queimo 1% das calorias ingeridas no dia; faço uma respiração que meu professor me ensinou há anos e que eu nunca conseguia fazer, que inclui recitar um mantra mentalmente e visualizar cores (eu ainda me confundo e preciso me concentrar muitíssimo, o que é ótimo para fazer o ar vir e não sumir). mas tenho a sensação de que nada é suficiente para fazer passar minha dor de barriga.
suspiro ruidosamente. e os adolescentes da casa já estão quase acostumados. a mãe também tem tédio, a mãe também fica incomodada. já arrumei a maior parte dos lugares arrumáveis do meu pequeno apartamento: armários da cozinha, armários dos quartos. faltam só os livros. já costurei. já tricotei. já reli o texto de um livro que deve ser publicado ainda este ano. já escrevi um texto para um livro com textos de vários autores para a comemoração dos 16 anos da Alameda Casa Editorial. falta digitar uns poemas inéditos. lavei uma parede da cozinha que tinha deixado de ser branca tinha tempos. e escovei com uma mistura de vários ingredientes, como vinagre e bicarbonato de sódio, todos os estofados da casa. há dias olho para os vidros dos janelões da casa e penso que preciso juntar coragem e limpá-los.
e a dor de barriga segue firme e forte.
meu filho fez 18 anos, minha filha, 15. os aniversários foram na última semana. comidas especiais, bolos especiais, velas para cantar o parabéns. aniversários ao mesmo tempo festivos e solitários. ou singelos.
eu escuto barulhos que só o silêncio da cidade permite. passarinhos cantam lindamente na hora em que o sol nasce. os estrondos das muitas obras na vizinhança - meu bairro é vítima da triste gentrificação que assola várias regiões da cidade cinza - entram no meu apartamento como se as obras fossem aqui no prédio. caminhões fazem um barulhão ao passar na rua ao lado do prédio, como se eu morasse em uma pequena cidade do interior onde caminhões só passassem vez ou outra. também escuto alguém conversando ou cantando, em diferentes horas do dia. entra pela janela da cozinha, se for alguém na entrada lateral do prédio. pela porta da sala entra o som da voz da minha vizinha, que fala muito alto, mas que eu nunca escutava. pela janela da sala entra uma música clássica no fim do dia. e pela janela do meu quatro entram as gargalhadas da minha vizinha do andar de cima, que está sempre muito alegre ao conversar ao telefone, imagino.
tenho me concentrado para só ler notícias esporadicamente. e tenho me esforçado para não mandar para os amigos vídeos e textos que recebo. simplesmente porque tenho a sensação de que não precisamos de MAIS informações. precisamos, isso sim, de MELHORES informações.
eu sei que estes dias têm sido um treinamento intenso para a minha paciência. devo agradecer, porque treinamentos valiosos e gratuitos são um presente. mas a minha impaciência parece comer pedacinhos de mim, de tão voraz que ela chega. feito uma criança pequena, queria ter outra vida. como quando eu tinha 7 anos: eu dizia que pintaria meus cabelos de preto, porque não gostava de ser loira; que usaria um produto anunciado na TV, Sardalina, para deixar o meu rosto só com um tom; e, por fim, deixaria de me chamar Patrícia, que eu não considerava um nome bom. agora meus desejos são um pouco mais infantis do que 40 anos atrás. queria passar uns dias boiando no mar na Grécia; me casar; e ganhar muito dinheiro.

minha amiga Dori costurou máscaras para nós


enquanto sigo com as minhas fantasias pueris, vou me sentindo muito forte. aprendi a identificar um ataque de pânico que vem no meio da noite. chega pela minha cabeça, com algo como "você é uma imprestável que nem consegue pagar todas as contas num mês", passa pelo coração, que começa a bater mais rápido, passeia pelo corpo, provocando suor ou calafrios, e finaliza seu show pirotécnico na região do umbigo, onde sinto um gelo interior. mas no fim das contas, eu ganho: aprendi a deixar o ataque dar o seu showzinho assustador e, depois disso, deixá-lo partir.



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