para de correr, menina

na história da rosinha de espinhos, uma menina recebe um feitiço de uma bruxa má, que diz que quando ela completar 15 anos ela vai furar o dedo e vai adormecer por 100 anos. e, apesar de todos os cuidados dos pais, ela de fato fura o dedo aos 15 anos e adormece. o nome mais conhecido dessa história é bela adormecida.



eu fiquei imaginando o castelo onde ela teria adormecido. tudo quieto, silencioso, sem movimento. e foi essa imagem, a de um castelo em repouso, que me veio à cabeça hoje quando saí para correr. a praça que esteve vazia por três meses estava com muitos, mas muitos cachorros e seus donos. havia babás de branco e bebês, tanto no parquinho quanto dando voltas na pequena circunferência da praça do bairro. tinha dois ou três professores de ginástica, mas isso sempre teve. mesmo quando a praça estava vazia.
nas calçadas havia gente andando, correndo, bebês sendo levados em seus carrinhos, homens e mulheres andando apressados rumo ao trabalho. na grande avenida que separa a rua onde moro da idílica pracinha havia tantos carros que o farol estava verde, mas ninguém andava. o que chamamos, aqui na cidade cinza, de trânsito. mas também conhecido como engarrafamento. o entreposto de entregas dessas empresas de entrega que subempregam jovens em bicicletas estava aberto e, na calçada, havia bicicletas, motos e um ou dois carros esperando. muitos funcionários varriam ou lavavam calçadas, uma cena que não se via desde o meio de março.
eu pensei com pesar que o silêncio e a tranquilidade desta cidade tinham chegado ao fim. eu, que tinha estranhado tanto ver a rua tomada de restaurantes às escuras no entardecer no começo do claustro, fiquei desanimada com a volta do burburinho. mas como uma das maravilhas de praticar mindfulness é ficar mais atento, eu percebi a tristeza tentando grudar em mim. e, claro, ela não grudou.
o dia tinha começado de um jeito diferente. o herval flores, um dos mestres que me mostraram como ter um holofote aceso para iluminar as trilhas escuras da minha existência, sempre me dizia que filhos são para sempre. dávamos risada. o filho dele era já adulto, mas os meus, não. os filhos crescem e temos a impressão de que wow, estamos já sem filhos. mas não estamos. hoje cedo eu tinha uma aula, meu filho pediu que eu relesse um texto que ele acabara de escrever para a escola, minha filha tinha machucado o olho ontem à noite e hoje de manhã reclamava ainda e não pôde assistir às aulas. um olho não abria, um incômodo que ainda não sabemos se é uma conjuntivite ou um cílio que entrou no olho ou simplesmente um saco cheio de estar em casa há quase 90 dias sem ver nenhum amigo.
estiquei meu músculo da paciência, o da resiliência e o do bom humor. filhos crescidos ainda são filhos. ainda que nós, mais crescidos do que eles, às vezes também queiramos ter uma mãe pra cuidar da gente. não temos. 
a semana começou muito bem. como fazia muito tempo não começava. eu participei de um mini retiro, que começou sexta e terminou domingo cedo. cada um na sua casa, e nosso rico professor no zoom nos dando aula e suporte. um retiro nunca é uma experiência leve, nem maravilhosa. é boa e ruim. como a vida. mas como ficamos em jejum - de comida, de filmes, de livros, de palavras, de computador e de whatsapp -, as sensações ficam aumentadas pela nossa lente do desespero e carência. sobrevivi e, no fim, estava me sentindo cheia, muito cheia de energia. o que me fez acordar às 5h na segunda para fazer minhas práticas diárias de orações e mantras e meditação, tomar café e sair para correr. 
toda vez que eu tenho muita energia eu tenho de andar com cuidado redobrado. senão resolvo todos os dias acordar às 5h e fazer 42 coisas até as 7h. um horror. e foi antes de ser um horror que, na segunda, eu percebi que eu estava louca e decidi tomar café mui lentamente e adiar minha corrida em uma hora e meia. por que eu tinha de sair para correr às 6h30? por que eu não parava de olhar no relógio? por que tinha lavado a louça bem rapidinho? porque eu estava louca. 
e é disso que eu tenho medo. de que com o fim da quarentena, voltemos, todos nós, ao nosso antigo estado normal de vamos-fazer-o-máximo-que-pudermos-em-um-mínimo-de-tempo. vamos ser produtivos. vamos ser eficientes. vamos correr. atender o telefone e digitar ao mesmo tempo, para não parecer uma pessoa mole ou lenta. vamos ler e conversar ao mesmo tempo. tomar banho sem sentir a água batendo no corpo. escovar os dentes e, ao sair de casa, ficar em dúvida se de fato os dentes foram escovados. colocar a roupa para lavar às 7h para que quando sairmos da casa a roupa já esteja estendida, secando. comer qualquer coisa a qualquer hora e de qualquer jeito. 
cansei. só de lembrar.
o que será preciso para que façamos uma coisa de cada vez? para que olhemos para o céu quando o sol nasce e também quando se põe? para olhar o tamanho da lua no céu à noite e descobrir que ela está cheia? para cozinhar com alegria o almoço de todos os dias? para agradecer o dia que tivemos quando deitarmos a cabeça no travesseiro?
vou pensar. e descobrir. 
e feliz começo do fim do claustro, para todos, em todos os lugares. 

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