não tenho do que reclamar

muitos anos atrás, quando eu estava grávida do meu primeiro filho, eu li um livro cujo título é "o que esperar quando você está esperando". ou algo assim. escrito por umas americanas pediatras, era um calhamaço com dicas adoráveis principalmente para mulheres que, como eu, seriam mães pela primeira vez. eu lembro de muitas até hoje. 
uma delas dizia que nossos filhos escutam muitos nãos. e que, por isso, deveríamos manter um ambiente que a criança pudesse explorar sem muitos nãos. exemplo clássico: mesa de centro (ou de canto) da sala tomada de bibelôs. tem gente que acha ótimo o filho nunca tocar nas corujinhas de cristal ou nos elefantinhos de louça. mas parece tão mais legal você poder meter a mão e explorar (sim, crianças metem a mão e exploram e é bom que isso aconteça, porque algo depois muda e podemos virar adultos que não exploram muito ou que não exploram nada).
mas por que uma pessoa fala sobre isso? meus filhos são quase adultos. não. um é adulto, o outro é quase. o fato é que o assunto ficou piscando na minha cabeça dias. desde que, semana passada, passei um dia inteiro ouvindo nãos. na verdade, não necessariamente a palavra não. mas saldo negativo no banco, impossibilidade de concessão de bolsa de estudos para um filho, nenhum trabalho à vista, nenhum pedaço de tofu na geladeira para fazer chili vegano, nenhuma nota na carteira, demora no aparecimento de um depósito na conta do banco.
a vida nos dá muito mais nãos do que sins (hum, seria esse o plural? ha ha ha). estou em dúvida se estou viajando na maionese ou se isso é um fato. mas enquanto vou pensando, tinha de escrever sobre isso. até para pensar melhor e pra me curar de um mau humor rançoso que gruda em mim pelo menos uma vez por dia. 
um tempo atrás - não vou calcular porque ficou um certo trauma -, eu estava me preparando alegremente para partir para um retiro vipassana. o que é isso? é um ato de coragem e bravura em que você paga para ficar num lugar longe da sua casa, preferencialmente em meio à natureza, sem falar, sem carregar seu celular, sem ler, sem escrever. mas o que se faz então? fica-se meditando. o dia inteiro, até a noite. e começa-se quando ainda é de noite, antes de amanhecer. um dia depois do outro. claro que parece uma coisa insana, mas é o contrário: você faz um retiro vipassana para manter-se são.
voltando ao 'um tempo atrás'. segunda-feira. acordo e faço as coisas que faço ao acordar e saio para comprar verduras. vou devagar, me sentindo cansada. ao voltar (é uma caminhada de uma hora, sendo que a meia hora da volta ainda tem o peso do carrinho lotado de alfaces e cenouras e batatas), entro em casa e me jogo na cama. eram 11h. acordei ao meio-dia, para preparar o almoço. o carrinho cheio de verduras estava no meio da cozinha. arrumei tudo, cozinhei, comi e dormi de novo. morrendo de frio, eu sabia que estava com febre. não dava pra medir, porque meu termômetro de mercúrio do século passado havia caído no chão e se estatelado uns dias antes. e eu tinha penado para catar todas as bolinhas do mercúrio que teimam em fugir quando tentamos pegá-las. depois penei para encontrar um lugar adequado para o descarte do mercúrio venenoso. 
quando acordei, no fim do dia, cancelei uma reunião e mais outras reuniões que seriam no dia seguinte. eu estava doente. na terça passei o dia na cama, reclamando e chorando e tentando fazer um teste para detectar o coronga. até me dar conta de que devia cancelar a minha ida ao retiro, que aconteceria na quarta. 


afundada na cama


o dia em que me considerei curada 


alívio. quando parei de reclamar e de chorar e de me sentir uma pobre miserável que nem ao retiro consegue ir, me senti bem, mesmo na cama. passei uma semana deitada. não sei o que foi nem vou saber, porque quem está ganhando dinheiro com a pandemia está ganhando tanto, mas tanto, que não há horário nem laboratórios perto da minha casa disponíveis. 
estou curada do mal. mas é claro que não me curei de considerar isso mais um não na minha vida. entre tantos. ha ha ha. parece que gosto de me fazer de coitada.
se isso fosse uma carta, agora eu escreveria "sem mais, atenciosamente, patrícia berton". mas não é. então vou encerrar de outro jeito. talvez, e muito provavelmente, quando uma pessoa acha que a vida é feita de nãos, com um sim aqui e ali, ela deve estar DESATENTA às coisas boas e às coisas maravilhosas e às coisas neutras que acontecem na vida dela todos os dias, o tempo todo. por que isso agora? porque enquanto eu passava dias deitada no sofá, eu pensei em escrever um texto cujo título seria "não tenho do que reclamar". e não "ó vida ó céus de quantos nãos é feita a minha vida". o que me leva a crer que se tenho meditado de uma a duas horas por dia, isso tem sido pouco. 
ponto final.

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