o teto solar

quando minha mãe ficou doente, e todos sabíamos que ela ia morrer, eu tinha muita falta de ar. eu andava pela cidade com o teto solar do meu carro sempre aberto. eu tinha a sensação de que o ar que entrava pelo teto era forte para acabar com a minha falta de ar.
é claro que era só uma fantasia minha.
uns dias antes de ela morrer, minha filha e eu fomos sequestradas. eu fiquei com muito medo, mas tanto medo, que rezei durante os 45 minutos em que fiquei sentada na areia de um campo de futebol, numa ladeira sinistra na favela. depois eu dirigi bem bonitinha até em casa, dizendo pra minha filha que tínhamos de perdoar os malacos que haviam nos sequestrado e ido às compras com o meu cartão do banco enquanto eu e ela olhávamos formigas que andavam lentamente sobre a areia quente do campinho do futebol.
quando eu cheguei em casa e encontrei meu filho - quando a gente é sequestrada a gente pensa que os malacos podem nos roubar tudo: a coragem, o carro, o dinheiro e até nosso filho que tá em casa -, eu chorei por algumas horas.
chorei por alguns dias, mas tive de parar de chorar quando me dei conta de que minha mãezinha estava indo embora. o médico não concordou quando liguei, num domingo, e disse que iria pra porto alegre imediatamente. "a situação é grave, mas é estável", ele me disse, com sua voz firme e doce.
mas eu tinha uma aflição que vinha de dentro do meu coração, e dois dias depois, por volta das 6h, antes do sol nascer, lívia, joão e eu partíamos rumo ao sul, dentro do nosso carro, que estava cheio de comidas e malas com muitas roupas para o inverno gaúcho.
quando chegamos a porto alegre, eu senti um alívio muito grande. estava perto da minha mãe, e isso era o que importava. a morte nos aproxima do que é importante, do que é essencial.
quatro dias depois, minha mãe se foi. eu senti uma coisa, que eu não sei o nome, e resolvi dormir com ela no hospital. mas eu me virava de um lado pro outro naquele sofazinho safado de quarto de hospital bacana, e ia ver se ela estava respirando de 10 em 10 minutos, ou menos. não lembro do tempo, só a aflição. eu não sabia que os anjos fazem um ritual quando alguém vai-se embora. o ritual é lento, suave e pacífico.
uma semana e meia depois de eu ter ficado no campinho de futebol com a minha filha, rezando como nunca tinha rezado na vida, lá estava eu num quarto de hospital com janelas gigantes e vista para uma igreja muito linda, luzes acesas, terço e japamala na mão, bíblia aberta, rezando pra aguentar ver minha mãe morrer.
"você não quer ligar pra alguém vir aqui e ficar com você?", sugeriu a enfermeira que trouxe o saco com morfina para sedar minha mãe. não, eu não queria. não queria ninguém que falasse alto, nem que gritasse. então não quis ninguém, e bem louca, fiquei lá sozinha com ela.
mas por que escrevo isso agora, quase um ano depois?
porque hoje o chão se abriu novamente. e a gente nunca está pronto. quando estivermos prontos, vamos partir. enquanto isso não acontece, vamos vivendo um dia depois do outro, com um susto depois do outro, com tristezas e alegrias misturadas.
e cá estou eu de novo, andando com o teto solar do carro bem aberto, como se o ar que entra de cima fosse potente o suficiente para acabar com a minha falta de ar.
eu não tenho medo de ficar sem trabalho. eu nunca fiquei sem trabalho.
eu tenho medo é de não ganhar dinheiro. de não conseguir pagar a minha vidinha e a dos meus filhos. de ficar com a falta de ar por conta desse medo.
eu tenho esses medos bestas.
eu sei que tudo passa, e isso também passará. mas o ar não vem, e eu tenho de dirigir com o teto solar escancarado, com o sol na minha cabeça, e meus cabelos loiros/grisalhos brilhando com esse sol, ou molhando com a chuva. pelo menos assim tenho a sensação de que entra mais ar pelo meu nariz.

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