ninguém mandou ter filho

filhos que moram só com um adulto costumam ter uma vida um pouco mais exposta à, digamos, vida como ela é.
eu sou o único adulto na minha casa. até dois anos atrás, éramos dois: a santa Nalva, que trabalhava de segunda a sexta no meu pequeno apartamento, e eu. então eu tinha, ALÉM DOS MEUS FILHOS, uma interlocutora adulta. eu entrava na cozinha de manhã, antes de sair para o trabalho, e quem tinha de me dizer se a roupa que eu estava usando estava decente? quem escutava meu blá blá blá sobre os telefonemas que eu recebia da minha mãe, que adorava contar muitas coisas quando me ligava, mas sempre esquecia de perguntar como eu estava? quem sabia de todas as minhas chateações no trabalho, na escola das crianças? a santa nalva.
mas os filhos crescem, e as santas nalvas vão embora. e então, por mais que eu me esforce, e eu me esforço muiiiiiiito, meus filhos costumam ser meus ÚNICOS INTERLOCUTORES em alguns, ou melhor, vários dias. é um pouco constrangedor admitir isso e escrever sobre o tema. mas a vida é assim, bem menos cor de rosa do que imaginamos ou queremos que seja.
mas nem tudo está perdido. nessa exposição à vida como ela é, filhos que moram só com um adulto sabem que o adulto fica doente, fica cansado, chora, tem dúvidas, tem medo e faz cagadas. e, consequentemente, aprendem a acender o fogão, ligar o forno, preparar um prato de comida, ir ao supermercado comprar frutas, descer à portaria do prédio para pagar e pegar a pizza.


eu tinha 31 anos quando pari pela primeira vez. era uma pessoa-que-acha-que-tudo-pode e tinha certeza de que ter filhos era uma tarefa de duas pessoas adultas, no caso o pai e a mãe da criança. na época, imagino que mais por instinto do que por razão, criei um mantra, do qual jamais me esqueci. mãe também é gente.
aos 31 anos eu não tinha ideia do que era ser mãe solteira. e se tinha alguma ideia, eu tentava mantê-la distante de mim (imagina, que loucura criar filhos sem marido!). o exemplo real de uma mãe solteira mais próximo que eu tinha era o da minha cunhada, que descobriu estar grávida da segunda filha depois de se separar do marido e, mesmo assim, separou-se. ela é médica, fazia plantão em hospitais, morava em uma cidade pequena do interior, sem família por perto e, hercúlea, manteve a decisão de terminar um casamento que já estava terminado. eu pensava que a Béti era louca. alucinada, psicopata. que ela tinha a fantasia de ser a Mulher-Maravilha.
muitos e muitos anos depois de tudo - do meu nascimento, de achar que a Béti era uma desvairada, de não saber o que é criar filhos sozinha, de ser magra e ganhar bem e me achar invencível, de ter um marido que eu tinha certeza de que seria meu parceiro na empreitada de criar filhos -, eu compreendi que ser mãe solteira não costuma ser uma opção. não é assim: você senta no sofá da sua casa, cruza as pernas, toma um gole de uísque e diz pra si mesma "voilà, vou fazer algo diferente e vou dar conta dessa criançada sem a ajuda de ninguém". não, não é assim.
também descobri que ser mãe, casada ou não, é maravilhoso e duro para TODAS as mulheres. e que ser mãe é um ato nobre. e que mãe só é tratada como gente se ela própria souber que ela é gente. e que para criar filhos não são necessárias duas pessoas, mas muitas mais.


o mantra ainda segue vivo e lindo e útil pra mim. e eu imagino que ele poderia ser vivo e lindo e útil para todas as mulheres do mundo, para todos os homens e para todas as crianças também. para que nós tivéssemos esse olhar para todas as mães, independente das circunstâncias.
sim, eu me achava uma pobre miserável quando me vi sozinha com um filho de 3 anos e uma filha de 10 meses. e esse sentimento de ó-vida-ó-céus-que-dureza durou muitos e muitos anos. ainda que uma coragem selvagem me acompanhasse e me desse forças para trabalhar, dormir, acordar, cuidar, alimentar, passear, brincar e fumar, a nuvem cinza-escuro estava sempre sobre a minha cabeça.
mas a vida segue e tudo passa. a nuvem foi-se, e eu entendo que algumas escolhas não são uma escolha entre muitas, mas a única escolha possível. sem culpas, sem idolatria, sem mimimi.
e só assim, feliz da vida, é que consigo escutar as barbáries que filhos são mestres em dizer, como "ninguém mandou ter filho".
ninguém mandou mesmo. aliás, ninguém nunca mandou eu fazer nada. e quando decidi ter filhos, ou melhor, quando e o pai dos meus filhos e eu decidimos tê-los, foi bem decidido, se é que posso dizer isso. eu não acredito muito em planos. talvez porque nunca botei fé nos meus próprios planos. mas um deles deu certo, sim, e eu preciso me lembrar disso para seguir com coragem, que é o que a vida quer de nós.


ninguém mandou ter filho, fui eu que quis.
hoje em dia, em vez de reclamar, quando estou ficando furiosa na minha casa eu começo a rir e digo "ninguém mandou ter filho". meus filhos, que têm certeza de que vieram parar neste mundo e com esta mãe por acaso, morrem de rir.
aliás, rir é um poderoso remédio pra tudo. inclusive para aliviar o peso, quando temos a impressão de que há toneladas sobre os nossos ombros. e quando isso acontece, além do riso (ou da gargalhada), é bom parar um pouco, respirar e mandar embora a impressão do peso sobre os ombros. se não, corremos o risco de nem nos divertirmos.   

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