por que NÃO fazer tudo sempre igual

chegamos ensopados.
três dias atrás, em um cruzamento de duas largas e barulhentas avenidas de são paulo, senti vontade de pisar no chão sem sapatos. mas em vez de tirar os sapatos e andar de pés descalços pelas calçadas imundas até a minha casa, segui andando com meus sapatos e minha vontade foi aumentando.
eu estava me organizando para viajar para o interior naquele dia, mas a semana foi passando e eu me dei conta, um dia antes da viagem, de que eu estava sem condições de viajar. não, não era o trabalho. era eu. não jogar a culpa em cima de alguém ou de algo é bem bom. ou, se não é bom, pelo menos é útil, porque nos ensina a lidar com as coisas sem mentiras, sem mimimi.
depois de decidir não viajar, sobrava um fim de semana inteiro sem planos. uma maravilha.
avisei os meus filhos, que não andam de bicicleta há uns anos, que eu iria ao parque no sábado ou no domingo. quem quer ir comigo?, perguntei, esperando escutar grunhidos como ãããn, blé, humpf. mas não. em vez de grunhidos, meus dois filhos toparam.
íamos acordar cedo. mas não acordamos. e tivemos uma baixa. minha filha não estava em casa. tomamos café e nos aprontamos. e lá fomos nós.
uma bicicleta própria, fomos atrás de uma bicicleta para alugar. um pouco de trabalho, suspiros, puta merda, e conseguimos pegar a tal da bicicleta. tinha muitos, muitos anos que eu não via a cena: meu filho pedalando feito um louco (ele aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas aos 3 anos, para o meu desespero).
eu só queria pisar na grama. e meu filho queria correr. vamos mãe, pedala rápido!, mas eu já estava pedalando muito rápido. em tempo recorde, chegamos ao parque. brasileiro não vai ao parque em dia nublado. nem em dia frio. ou seja, o parque estava muito vazio para um domingo.
como crianças babando ao ver um pirulito enorme e colorido, entramos no parque em êxtase. eu porque estava prestes a andar descalça na grama, meu filho porque queria comer açaí e estava adorando o passeio que não fazíamos havia vários anos (quatro ou cinco, talvez).

primeira parada, antes da tempestade*


começou a cair uma garoa fina. e lá fomos nós atrás de um espaço com grama e um banco para mim e uma barra de exercícios para o meu filho. começou a chover pingos grossos. e eu fiquei debaixo de uma árvore. ao escutar trovões, lembrei que o parque não é um lugar seguro em dias de chuvas com trovoadas. saí andando para buscar abrigo, e parou de chover. andei menos de cinco minutos descalça sobre uma grama macia e voltou a chover forte. hora de achar um abrigo. nos sentamos debaixo de grandes guarda-sóis num lugar que vendia lanches, algo entre um trailer de cachorro-quente e uma kombi de pastéis, açaí com rodelas de banana e salgadinhos amarelos e fedorentos. chovia muito, o parque estava cada vez mais vazio, e nos faziam companhia várias famílias - um avô com três netos, sendo o menor deles tão pequeno que foi embora numa cadeirinha na bicicleta do avô; um casal com três filhos com idades e cabelos tão diferentes que pareciam ser frutos de outros casamentos; um pai com duas filhas que queriam ir embora e ele dizia "mas embora pra onde, com essa chuva?". algumas pessoas muito prevenidas andavam pelo parque sob a proteção de guarda-chuvas.
a chuva diminuiu, e decidimos voltar pra casa. mesmo a minha caminhada sobre a grama tendo sido uma versão redux, de menos de dez minutos.
ao começarmos a pedalar pela faixa de ciclistas que tem no canteiro central da avenida que dá no parque, começou a chover. aí a chuva foi ficando forte, até ficar fortíssima e virar uma tempestade. um vento forte nos obrigava a fazer mais força para pedalar, e sentíamos a água escorrendo pra dentro dos nossos tênis.
era uma situação que exigia mais resiliência e aceitação do que coragem. não havia muito a fazer, a não ser pedalar. eu me dei conta de que estava pedalando o mais rápido que podia para chegar em casa - e ao banho quente - logo, quando percebi que estava ficando muito cansada e que o passeio estava perdendo a graça. meu filho, que comentava que era muito magro e por causa da falta de gordura estava sentindo muito frio, também desistiu de pedalar feito louco para chegar em casa antes de mim.
e então passamos a pedalar no ritmo possível, tomando água de pingos grossos na cara, lavando o corpo, a bicicleta, as roupas, o capacete, os tênis e a alma. eu dava uns gritos, ele dava outros, e os cinco ou dez ciclistas que cruzaram o nosso caminho durante pouco mais de meia hora davam risada ou gargalhada ou davam outros gritos de êxtase. os carros passavam sobre enormes poças d'água e nos molhavam um pouco mais. 
fazia tempo que eu não tinha de me concentrar para terminar algo que exige força. não a força de quem consegue levantar o saco mais pesado, mas a força de quem aguenta o peso do próprio corpo contra o vento forte e frio, as roupas molhadas e pesadas e a concentração necessária pra seguir pedalando quase numa coreografia. tentando não pensar em nada, só seguindo e aproveitando o que estava no nosso caminho.
o banho quente doeu na minha barriga, que devia ser a parte mais fria do meu corpo. depois de vestir roupas secas, meu corpo esquentou muito. como quando eu viajava para lugares ermos e tomava banhos em cachoeiras gélidas. ou quando ia pra praia no norte do ceará e o banho era com água do poço. mas o melhor não foi o calor. o melhor foi a sensação de uma gloriosa alegria. acho que é isso. gloriosa alegria.
combinamos de irmos ao parque mais vezes. é como se a vida tivesse uns hiatos. quando meus filhos eram pequenos nós íamos ao parque todo fim de semana, e ficávamos com as bochechas avermelhadas de tanto correr, andar de bicicleta, fazer castelos na areia, cortar frutas e comê-las sentados sobre uma colcha na grama. mas quando eles deixaram de ser crianças pequenas e viraram crianças quase adolescentes, o parque virou um programa solitário. eu e minha bicicleta, uma mochila com um livro e uma fruta, uma garrafa de água e um boné. e ontem, como se fosse o começo de algo novo, fui ao parque conversando daqui até lá. e gritando de lá até aqui.
uma alegria gloriosa.

*fotos da dupla ensopada foram censuradas. sorry. :(

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