apreciar ficar só é uma dádiva

acordei e olhei pelas frestas da porta do quarto, que estava fechada. vi que a luz do dia ainda era fraca. e eu estava certa. depois de anotar um sonho um pouco confuso, olhei no relógio do celular. eram 6h30.
não sabia se hoje faria sol ou se seria um dia nublado. só sabia que seria um dia fresco como ontem. em que não usar meias pode ser um ato de coragem, mas usá-las pode dar calor. ao abrir as janelas enxerguei o céu azul.
fugi para o parque. queria deixar meus pensamentos de lado, em casa, e vir sozinha ao parque tirar o mofo do corpo, dos meus órgãos, do meu olhar e da minha alma. mas meus pensamentos, teimosos, vieram comigo.
a cidade virou uma cidade-fantasma. um domingo pós feriado na sexta é sempre uma alegria nesta cidade tão grande e tão cinza. seus moradores fogem rumo ao interior, ao mar ou às montanhas. eu fujo em direção a mim mesma.
enquanto o sol esquenta o meu corpo, olho ao redor. aviões passam quase sobre a minha cabeça, quero-queros voam e cantam e algumas pessoas de camisetas coloridas - pink, turquesa, laranja, vermelho, verde-água - andam pelo parque tranquilamente. ou correm. alguns andam de patins. um grupo faz uma série de polichinelos, rápida e animadamente. e formigas ligeiras passeiam sobre o meu tapetinho cor-de-rosa claro.



eu vou fazer uma torta hoje. para celebrar os 77 anos que a minha mãe faria caso não tivesse partido desta.
é engraçado como este parque tem umas coisas abandonadas. estacionei minha bicicleta e estendi meu tapetinho ao lado do que parecem ser dois poços abandonados. olhando pra frente tem uma espécie de torre de concreto, pintada de verde bandeira. como se aqui onde foi feito o parque já tivesse sido outra coisa, mas quando criaram o parque esqueceram de demolir algumas delas.
o parque está tão verde que chega a ofuscar a visão. eu adoro vir ao parque aos domingos. porque tem um punhado de gente só curtindo. cada um do seu jeito. a galera do polichinelo agora dá pulos pra cima com os braços esticados pra cima e se joga no chão em posição de prancha, pulam e se jogam, pulam e se jogam. olhei de novo e eles tinham sumido. mas não. estão todos no chão fazendo prancha.
tem os mais tranquilos, levando seus bebês pra passear em carrinhos. um bebê acaba de chegar com seus pais. eles se instalam numa sombra bem perto de mim.
no meu caminho de casa até o parque havia alguns ciclistas, mas nenhuma mulher. só homens. gordos, magros, pretos, brancos, jovens, velhos e muito velhos. em uma curva eu perdi o equilíbrio e caí, e não sei como não tive nem um arranhão. um homem na minha frente voltou com a sua bicicleta e me perguntou se estava tudo bem. sim, estava. minha bicicleta caiu no meio da faixa. e dois homens que estavam atrás de mim tiveram tempo de frear e não cair sobre a minha bicicleta estatelada. eles também desceram das suas bicicletas e, como se não tivessem escutado o que eu tinha dito para o primeiro homem, que tinha voltado para falar comigo, perguntaram se eu estava bem. sim, eu estava, respondi mais uma vez.
eles se foram - estavam todos juntos no mesmo grupo só de homens - e eu respirei algumas vezes até montar novamente na minha bicicleta. na frente do parque eles me reconheceram e me perguntaram se o susto tinha passado. tinha. porque depois do susto eu senti uma tristeza gigante e lá se foram lágrimas molhar minhas bochechas. eu estava com saudades da minha mãe, e eu nunca admito isso. a saudade tem de vir e me derrubar para eu enxergá-la dentro do meu coração.
...
cheguei em casa com duas bolas vermelhas nas costas - exatamente nas áreas das costas que por mais que eu me estique eu não alcanço para passar protetor solar. a torta que eu faria em homenagem à gerdinha virou um rocambole. que eu estou comendo sozinha, celebrando a saudade.
apreciar ficar só é uma dádiva. com a qual estou me deliciando já faz uns dias, desde quando meus filhos foram viajar com o pai deles.



vou aproveitar. tenho ainda mais três dias do mais absoluto silêncio. só por fora. porque por dentro meus pensamentos seguem animadíssimos. como se minhas práticas de meditação diárias nem chegassem perto deles. eu sei que chegam, mas eles (os pensamentos) fingem que não. coisa de gente orgulhosa.

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