Na casa da mãe morta


Visitas são como peixe fresco. Duram dois ou três dias na geladeira. Depois disso, começam a feder. Eu, que fiquei 15 dias hospedada na casa do meu pai, no Sul do país, me esforcei para não feder MUITO.
É um ato de bravura ficar tanto tempo como hóspede na casa de alguém. Ou de estupidez. Ou os dois juntos.
Ficar na casa da mãe morta foi bom. Eu lembrei dela todos os dias. Todas as horas. E a lembrança dela me traz alegria. Na primeira noite, dormi com as janelas escancaradas, e a luz amarela do poste da rua que fica bem na frente da casa iluminava a sala. Foi uma noite linda. Eu dormia a acordava e dormia a acordava, digerindo a emoção que foi lançar meus livros em Porto Alegre.
Combinamos, eu e a louca que mora dentro de mim, que esses dias na cidade em que nasci e de onde parti 24 anos atrás seriam as minhas férias. Aquela coisa de férias de quem tem salário eu não tenho faz três anos. E aquela coisa de férias de quem não tem salário eu também não tenho faz três anos.
Trouxe um livro, avisei alguns amigos, fotografei algumas receitas para poder prepará-las aqui na casa dos meus pais. E como se fosse um milagre, trouxe a tranquilidade junto comigo. São férias de dormir pouco. Durmo na sala, e acordo cedo com os latidos do cachorro.
Não encontrei quase nenhum dos amigos que queria encontrar. Temos muitos compromissos, o Natal parece um caminhão carregado que anda em alta velocidade. Às vezes parece que não temos coragem suficiente nem de ir atrás de quem realmente queremos encontrar nem de dizer que não queremos encontrar alguns outros.
Deixar de ser uma minhoca, mesmo nas férias, exige esforço. Eu costumo ir atrás das pessoas e organizar encontros, seja no parque, na beira do rio, em casa. Mas este ano e nestas férias peguei leve. Porque há várias maneiras de ser uma minhoca. E uma delas é ser uma minhoca ansiosa, que vai rastejando nervosamente e fazendo várias coisas como se isso fosse uma demonstração de algo bom.
Talvez eu esteja sendo ofensiva com as minhocas. Talvez elas sejam bichinhos espertos e determinados, mas que seguem no ritmo lento para não sucumbir à ansiedade. Mas sempre uso o exemplo das minhocas como se elas fossem lentas e molengas e não-determinadas e sem vontade. Seres moles.

o velho com a filha e as netas - milagres acontecem


Conseguimos deixar a água da piscina azul depois de mais de dez dias. Meu pai rosnava, dizendo que manter a piscina limpa dá muito trabalho. E assim, nos últimos dois ou quatro anos ele convive com a piscina cuja água tem uma coloração amarronzada e opaca, coberta por uma lona azul royal.
Um rapaz veio limpar a piscina, mas aparentemente entendia muito pouco do trabalho. Nisso, um cano quebrou ou descolou, e ele disse que precisávamos chamar alguém para consertar. Minha irmã falou com um sujeito, daqueles que fazem piadinhas sem graça. Sugeri que encontrássemos outro. Lembrei do meu afilhado. Paulinho diz que pode passar na casa do meu pai. Dá uma olhada e volta no outro dia com o pedaço do cano para repor. Diz que não vai cobrar os pouco mais de 100 reais porque está fazendo isso para a madrinha dele. Eu, uma madrinha fajuta, que cuidava dele quando ele era bebê, mas que nos últimos 20 ou 30 anos fui duas vezes à casa dele, somente.
Paulinho é filho da Maria, que trabalhou anos e anos na casa dos meus pais. Minha mãe a chamava de Maria Polaca. No dia do enterro da minha mãe, a Maria me abraçou chorando e disse “ela nunca mais vai comer a minha comidinha, que ela gostava tanto”. Dia desses a Maria estava num ponto de ônibus, passou mal e caiu morta. Tinha pouco mais de 60 anos. Eu disse ao Paulinho que isso era uma morte boa pra ela, uma mulher forte que sustentou uma casa com dois filhos e para quem talvez envelhecer e depender dos outros fosse insuportável. A Maria, como toda mulher que cria filhos praticamente sozinha, era uma mulher corajosa. E fazia comidas e bolos maravilhosos.
Depois de colar o cano do motor da piscina sob o sol do verão porto-alegrense, o Paulinho senta conosco na sala. E começa a falar, do mesmo jeito que a mãe dele falava, com força e bom humor misturados. Fala do primeiro emprego, aos 16 anos, como empacotador num supermercado, e da importância de usar um informe impecável e de nunca chegar atrasado. Da gorjeta que ganhou do padrinho dele, meu pai, que equivalia a meio salário mínimo. Do começo da vida como empreiteiro. Do orçamento de R$ 50 mil para uma reforma cujo contratante estranhou e o chamou para dizer que aquilo estava muito barato para uma obra (e ele acabou cobrando, incrédulo e feliz, R$ 80 mil). E de como ele aprendeu, faz uns anos, que ele não podia viver só de obras grandes, porque em tempos de vacas magras são as obras pequenas que o sustentariam. De como alguns amigos quebraram porque se negaram a pegar obras pequenas. E de como ele não lograva ninguém. Ele ia contando e rindo mais do que a gente. E eu percebi que estava na frente de um cara sábio e feliz.  
Voltando ao motor da piscina. O velho diz que herdou a máquina do meu avô, que morreu na década de 1980. Isso quer dizer que a piscina é filtrada por uma engenhoca que funciona há pelo menos 40 anos. Agora, com a água azul e netos boiando em boias coloridas, ele diz que nem acredita que conseguimos limpar aquele líquido que parecia grosso.
Alegria.
Eu levei muitos anos para encontrar o meu professor. E foi com ele que aprendi que a alegria que eu buscava e que achava tão importante não era algo frívolo de uma menina abestalhada. Ao contrário. Aprendi que a alegria era o que eu pensava e muito mais. Ela é o motor propulsor da vida. Sem alegria não existe a menor chance de acharmos graça em viver. (Dizem que um aluno encontra o seu professor quando ele, o aluno, está pronto. E há os que dizem que o aluno encontra o professor quando o professor está pronto. Não importa. Porque de todo jeito, na vida, tudo demora mais do que desejamos)
Aqui na casa do velho temos o privilégio de sermos servidos pela Analice. Nós não a chamamos assim, mas esse é o nome dela. A Ana trabalha aqui faz 35 anos. Descendente de italianos, começou a trabalhar cedo na roça e é do tipo que não tem dia ruim. Poderia trabalhar em outros lugares e ganhar muito mais, mas me diz que tem uma relação de parceria com o meu pai e que não quer trabalhar em nenhum outro lugar.
Ela me conta que a minha mãe, que nunca foi muito dócil no trato com seres humanos em geral, a pagava muito bem. Isso quer dizer que 20 anos atrás ela ganhava mais, em valores absolutos e não reajustados, do que ganha hoje. Algo que acontece comigo também. E talvez aconteça com a maioria de nós (teoria de uma ex-chefe minha).
Analice tem 67 anos. Dois filhos, quatro netos. É dona de duas casas, uma na cidade, outra na praia, e de um carro. Ganha a aposentadoria do marido, que morreu em consequência de complicações do diabetes – e de quem ela cuidou, dias a fio, sentada numa cadeira ordinária de plástico ao lado da cama dele no hospital. Ela não tem aposentadoria própria, porque o marido sempre disse que ela não precisava. Por isso Analice foi diarista e nunca quis ter registro em carteira. Sempre negociou com patrões fixos e avulsos para receber mais do que ganharia se fosse contratada.
Ela me conta do bailão que acontece aos domingos perto da casa dela, quando bandas tocam ao vivo por cinco ou seis horas. Morro de vontade de me convidar para ir com ela. Mas acabo não dizendo nada.
Analice vai passar dois meses nos Estados Unidos em 2020. O filho que mora lá, tatuando uma clientela que admira muito o trabalho dele, já comprou as passagens. Depois, ela pretende parar de trabalhar.
Eu a ensinei algumas receitas nos dias em que me metia na cozinha. Bolo de tapioca, hommus, guacamole, pudim de coco que deu errado e virou pudim de caramelo. Ela me conta de receitas que eu passei pra ela mais de 20 anos atrás. Ela anota todas as receitas que parecem interessantes e nunca mais esquece.
Digo pra ela entrar na piscina com a gente. Ela diz que não tem maiô. Dei a ela o dinheiro para comprar um. Vamos ver se ela se anima. Em Porto Alegre faz quase 40 graus. É quase enlouquecedor.
Fazia dois anos que eu não pisava em Porto Alegre. E não sei quanto tempo que eu não ficava na cidade por mais de uma semana. Acho que desde 2014, quando a minha mãe morreu e eu passei um mês na casa dela.

Ana e eu brindando enquanto derretíamos na cozinha no dia 24/12

Eu fiz as pazes com a cidade que eu não reconheço mais. Fiz as pazes com a casa da minha mãe, que está sendo devorada por cupins e que é tão diferente sem ela dentro. Fiz as pazes com o jeito recluso e monossilábico do meu pai.
E me dei conta que não sou de lugar nenhum quando a moça que passava as minhas compras no caixa do supermercado me olhou e perguntou: “quer sacola pro fardo?” Pensei se isso seria alguma promoção. “Como?” Sacola pro fardo, ela repetiu. Diante da minha cara de boba ela disse “fardo de cerveja”. Saí do supermercado me sentindo uma estrangeira. Dias depois o rapaz da padaria do supermercado repetiria o termo. “Tem salsinha a granel e tem no fardinho, na geladeira.” O fardinho a que ele se referia era a salsinha no pacotinho.
Boa reflexão para o ano que começa. Na Bahia sou alemã ou inglesa. Em Porto Alegre sou algo híbrido, uma loira gaúcha estrangeira. No centro de Porto Alegre o atendente da banca da erva-mate no mercado público me cumprimenta com um “hello” e eu, envergonhada por parecer uma estranha na minha terra natal, sorrio o maior sorriso que consigo e respondo com um “oi, vim comprar erva”. Em São Paulo sou “do Sul”, denominação genérica muito usada para todas as pessoas que nasceram a partir da divisa dos estados de São Paulo e Paraná até a fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. E às vezes uruguaios e argentinos também.

Fogo com lenha para o churrasco 

Que em 2020 tenhamos a vontade e a coragem necessárias para fazer deste mundo um lugar melhor. Para todos.  

PS – segundo o Houaiss, fardo significa:
objeto ou conjunto de objetos mais ou menos volumosos e pesados que se destinam 
ao transporte; carga
qualquer tipo de embrulho, pacote ou volume
fig. aquilo que é difícil ou duro de suportar
fig. aquilo que impõe sérias responsabilidades







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