a vida solitária em dois atos

era 2002. eu era casada e tinha acabado de dar à luz quando decidimos nos mudar para boston. meu então marido foi aceito num programa do MIT (massachusetts institute of technology). e meu filho e eu fomos de enfeite.
o alessandro passava o dia na universidade, ora no MIT, ora em Harvard, porque ele podia assistir todas as aulas que quisesse em ambas as escolas. e eu passava o dia com o pequeno joão. que tinha cinco meses quando chegamos.
foi uma escolha minha. na época eu tinha um trabalho que eu adorava, como editora na abril, ganhava bem e estava de licença-maternidade. claro que eu não tinha ideia do que me esperava em boston. na verdade, cambridge, a cidadezinha universitária que fica do outro lado do rio charles e que abriga tanto o MIT quanto Harvard.

a mãe em tempo integral, uma coisa que eu nunca imaginei

pai e filho no jardim do prédio, depois que o inverno passou

eu era mãe pela primeira vez. tudo era novidade. e morar em uma cidade desconhecida, onde meu marido estudava e eu passava o dia com meu filho bebê, também era novo. eu estranhava passar o dia sendo a única pessoa que falava. meu pequeno filho dava risada, gritinhos, mas não falava.
até começar a nevar, saíamos todos os dias para passear. eu o colocava no carrinho e percorríamos o caminho de terra batida na margem do rio charles, olhando para os predinhos na outra margem do rio, em boston. eu caminhava uma hora, às vezes duas horas, e em dias muito animados, três horas. o joão ia no carrinho, porque ainda não andava - nem engatinhava.
eu me sentia só. as aulas do alessandro tinham horários diversos, e muitas vezes ele tinha aulas à noite também. eu sabia que eu estava lá para ficar com ele, mas que ele tinha a universidade, e essa era a prioridade. não lembro de reclamar - mas possivelmente eu reclamava, eh eh eh.
um dia, não lembro se num telefonema ou num email ou numa carta, disse para minha comadre que passava os dias sozinha com o joão, que às vezes a única pessoa que me respondia era o porteiro, quando eu passava na frente da portaria e dizia good morning, e ele respondia good morning ou have a good day ou as duas coisas. a márcia disse simplesmente "é só um ano, vai passar".
aquilo ficou na minha cabeça, batendo igual bolinha de ping-pong quando erramos a jogada e ela sai quicando pelo chão póin póin póin. era só um ano. eu voltaria ao brasil, eu voltaria a trabalhar, eu voltaria a encontrar meus amigos, eu voltaria para a minha casa.
vivíamos muito felizes em boston. talvez o ano mais feliz do meu curto casamento. e eu aproveitei muito. as longas caminhadas com o meu filho no carrinho, os longos dias dentro de casa durante os quase cinco meses em que nevou naquela terra que é gelada no inverno e um forno no verão. eu sabia que ia passar, e que era um privilégio eu poder passar o primeiro ano do meu filho muito perto dele, fazendo a comida dele, brincando com ele, olhando-o adormecer.
ontem passei o dia meio aflita e meio triste. algo que veio não sei de onde, não sei por quê. estamos todos bem, temos uma casa colorida e acolhedora, temos comida de qualidade, damos risada todos os dias, muitas vezes. e lembrei da frase da márcia e do alívio que senti com ela. dezoito anos atrás. e ontem também.
o que torna insuportável as aflições e tristezas, pensei, enquanto andava pela cozinha feito uma barata que aspirou baygon e fica tonta, mas não para de se mover,  é que não as queremos. nossa vontade infantil é de nos livrarmos de tudo o que não é agradável. o que, é claro, aumenta as aflições e as tristezas.
dezoito anos atrás eu lia krishnamurti e thoreau, mas ainda não conhecia o mestre zen tich nhat hanh. que diz uma coisa muito linda em relação aos nossos sentimentos indesejados: devemos tratá-los como tratamos uma criança que pega a manga na nossa blusa e fica nos chamando. se a pegarmos no colo e dermos atenção a ela, ela vai se acalmar e ficará feliz.
parei de me atormentar com a minha aflição e a minha tristeza. pensei ah-vá-tudo-bem-me-sentir-assim. e quando fui dormir, minha cara era a cara de uma pessoa feliz. mesmo eu não achando nem sentindo isso. e mesmo eu acordando hoje com as mesmas sensações de ontem. tudo bem. tem os dias bons, tem os dias ruins. e isso vai passar.

Comentários

  1. Parabéns. Adorei ler sua história em Boston. Bjs e um forte abraço teu afilhado Paulinho. Me lembro De quando nois tentávamos subir no Pinheiros. Eu era Pequeno me lembro de poucas coisas. Mas gostaria que vc . Fizesse um pequeno resumo da minha infância. Uma pequena história. Pois hoje já estou com 36 anos

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    1. paulinho, querido, obrigada! vou escrever sobre o que me lembro da tua infância!

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