quarentena, meu amor, e o poder do UAU


"se não estivéssemos na quarentena, você faria essa focaccia?', ela me perguntou.
a ideia de fazer um pão em casa veio da minha filha. fazia anos que não assávamos um pão. isso quem fazia era a nalva, minha querida ajudante que não trabalha mais aqui em casa há alguns anos, quase quatro.
eu tinha jogado no lixo uns pacotinhos de fermento biológico que eu encontrei no grande armário da cozinha na última arrumação que fiz. os fermentos estavam vencidos havia mais de dois anos. mas isso era fácil de resolver. qualquer supermercado vende fermento biológico seco.
encontrei uma receita que me animou, que não levava açúcar nem leite. e fiz a primeira focaccia da minha vida. aprendi que para um bom pão deve-se usar farinha de qualidade, orgânica e fresca. e não a farinha ordinária branca comprada no supermercado. meu medo que ia dar errado foi indo embora ao longo das horas que levei para fazer a receita. são 30 minutos para o fermento borbulhar, depois duas horas para a massa crescer numa tigela e mais duas horas para a massa crescer já esticada na forma. e os 20 ou 30 minutos finais, quando a focaccia assa no forno e vai deixando um perfume agradável na casa.

oh my god, eu fiquei sem palavras ao provar meu pão

eu não sabia se assaria pão se não estivéssemos na quarentena. talvez minha filha não tivesse dado essa ideia. que, imagino, surgiu a partir de trocentas receitas de pão postadas em instagrams na vida. dizem que as pessoas estão cozinhando muito nestes dias de claustro. o que é louvável. cozinhar é uma alegria e um prazer gigantescos.
nesses dias de zero trabalho remunerado, algum trabalho não remunerado e eu e meus filhos em casa todos os dias, tenho cozinhado com mais tranquilidade e entusiasmo. uma pausa para uma dieta detox que a minha filha sugeriu, fez uns dias comigo e e eu segui - estou entrando hoje na terceira e última semana de uma alimentação que tem zero de gordura, zero de sal e toneladas de saladas e verduras cozidas no vapor ou assadas. e nessa rotina de cozinhar não só o almoço e o jantar, mas pensando em delicias para o lanche da tarde e o café da manhã e as pausas dos meus filhos, entre uma aula e outra ou entre uma lição de dez páginas de português e um resumo de história, vou fazendo mais comidinhas num ritmo mais intenso do que antes do claustro. a fase dos pudins e bolos e brigadeiros deu uma acalmada, e agora rolam sucos tutti-frutti e sucos verdes e mingau de aveia e frutas picadas com mel e amêndoas e tapioca cor de rosa e até shakshuka, uma receita deliciosa e facílima do norte da áfrica em que tomates frescos ou enlatados são temperados e cozidos e ovos são colocados em 'buracos' cavados no molho e cozidos ali no meio dos tomates.

brigadeiro com capim limão da minha horta

fiz uma lista de coisas legais que eu estou fazendo em casa para escrever um texto, mas fiquei com aquela sensação de que ia escrever algo só pra dizer que 'há muitas coisas legais para fazer em casa enquanto estamos entocados sem poder sair para fazer um piquenique no parque no dia das mães'. todos nós sabemos que há muitas coisas legais para fazer. segundo o meu filho, tem até um vídeo de como fazer origami com as faturas que ainda chegam em nossas casas pelo correio. mas eu não quero escrever sobre como passar o tempo. pra isso existem as palavras cruzadas, os gibis, o youtube, talvez a televisão, que eu não assisto há anos então nem sei.

a cadeira quebrada que eu não queria mais...

foi lixada e pintada a pedido da sua dona...

e ficou assim, UAU

eis que na aula da última semana meu professor, Jangchub Reid, falou sobre o poder e a importância do UAU. a dica dele é que, se estivermos nos debatendo nesta quarentena, devemos procurar assistir algo maravilhoso como o cirque du soleil ou um jovem músico extraordinário. para ficarmos maravilhados, para ficarmos sem palavras. segundo o Jangchub, ao assistir algo assim UAU vamos iluminar os dias, as semanas e os meses das nossas vidas.

tapioca feita com água da beterraba para o meu café da manhã de princesa

e era sobre isso que eu queria escrever. sobre as possibilidades de encantamento. sim, temos tremeliques com a incerteza; insônia com a possível ou concreta falta de dinheiro; vontade de encontrar e abraçar e beijar quem gostamos. mas o céu parece estar cada dia mais azul. os passarinhos, imagino, são os seres mais animados aqui na cidade cinza com a tranquilidade desses dias em que os carros seguem tomando pó nas garagens, aparentemente cantando com muito mais fôlego.
uma das coisas mais fabulosas e inacreditáveis do claustro é a possibilidade de fazermos muitas coisas de um jeito totalmente diferente. dez anos atrás, quando comecei a trabalhar em casa, sabia que a agência em que eu trabalhava estava muito a frente do nosso tempo. eu tinha de explicar para os amigos e para os clientes. pedia desculpas quando, no meio de um telefonema, ouvia-se o backing vocal de crianças gritando ou chamando 'ô mãe'. eu era um allien para os parâmetros corporativos. e agora estamos todos trabalhando com pantufas, o que, vamos combinar, é um luxo.

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