desgrudando das melecas intrusas

ela é jovem, linda, magérrima. mas por algum motivo que eu desconheço, sugeriu que fizéssemos uma dieta de desintoxicação. eu estava me preparando para isso havia meses. mas dietas de desintoxicação costumam ser medievais, e é preciso muita, mas muita coragem para começar.
eu tinha achado uma boa desculpa. minha filha queria fazer, e aventuras medievais em dupla costumam ser mais encorajadoras do que as feitas sem companhia. li para a minha filha as duas dietas que eu tinha separado, para que escolhêssemos uma delas. a mais fácil.
a ideia era ela fazer por uma semana, no máximo. eu seguiria um pouco mais. nos dois primeiros dias, eu passei muito mal, pela primeira vez em uma dieta dessas em que se come muito pasto, zero sal, zero açúcar, zero gordura e zero álcool. minha cabeça doía violentamente por algumas horas, entre o meio da tarde e o começo da noite. e no segundo dia, eu senti um enjoo que me fez lembrar as vezes em que, na estrada, indo ou voltando do trabalho, eu pensava que teria de parar o carro no acostamento para vomitar. eu estava grávida da minha filha. mas como tudo na vida, o mal-estar passou no terceiro dia. minha filha estava muito impressionada e dizia que eu era guerreira. é uma delícia ouvir isso por conta de uma dor de cabeça e de um enjoo. que eu acho coisas tão pequenas se comparadas à epopeia de criar meus dois herdeiros.
resumindo a lenga-lenga detox, minha filha seguiu bravamente a aventura insana de saladas e caldinho de verduras - pra ela, a pior parte, que ela passou a pular no segundo dia - e queijo branco até concluir que nunca mais fará nenhuma dieta detox na vida. e eu segui, também bravamente, até completar o tempo máximo indicado, 21 dias. a partir dia 22 pode-se incluir duas colheres de sopa de aveia e um iogurte ao café da manhã e duas colheres de sopa de arroz integral ao almoço. bem, duas colheres de sopa de arroz e nada, para mim, eram a mesma coisa. mas depois de 21 dias, eu revi meus conceitos e passei a considerar duas colheres de sopa de arroz integral uma boa porção.
hoje ou amanhã eu completo 30 dias de saladas e verduras cozidas no vapor e queijo branco, com suas complementações e uma coisa de nada de sal e de azeite. pela primeira vez nesses talvez 20 anos em que faço uma ou duas semanas de verduras para limpar o corpo e a alma das comidas e dos pensamentos tóxicos, eu não comemorei a vitória com uma taça de vinho.
eu não acredito em dietas, nunca acreditei. mas acredito em faxinas. precisamos lavar o banheiro e a cozinha das nossas casas, e precisamos lavar o nosso corpo também. os efeitos de um período de desintoxicação são amplos. perda de peso é o mais perceptível. mas tem uma lista de efeitos mais sutis: as noites são mais bem dormidas, o corpo tem mais flexibilidade, a mente tem mais concentração, a resistência física aumenta como se fôssemos super-heróis, o olfato passa a registrar cheiros muito sutis que não eram percebidos antes, a pele fica lisa, a execução de tarefas, sejam físicas (varrer a casa) ou mentais (escrever um projeto), tornam-se mais fáceis de serem executadas, mais fluidas.
eu ia estourar se eu não parasse de comer e de beber durante esta longa quarentena. e mal posso acreditar que em meio às aflições que surgem neste cotidiano de não poder sair de casa e passear e tomar um vinho na casa dos amigos eu consegui fechar a boca. parei antes de dar tempo de estourar.
é quase bruto falar nesses termos. mas é isso mesmo. é também bruto comer e beber tudo o que aparece na nossa frente. não dá tempo de sentirmos fome nem sede. nem dá tempo de respirarmos tranquilamente. a receita perfeita para sentirmos que vamos estourar, de tanta comida, de tanta ansiedade.
"pare de ficar fascinado pela tristeza, pela raiva, pela solidão, pela ansiedade. e escolha prestar atenção em você mesmo." com essas palavras foi encerrada a aula de hoje, sobre autocompaixão. meu professor, que nem sabe da minha jornada vamos-comer-pasto-tita!, parecia estar falando comigo. mas ele não estava. éramos pouco mais de 80 alunos, espalhados pelo brasil e pelo mundo, escutando a lição. é curioso como, quando prestamos atenção, percebemos que a vida é cheia de sincronicidade.
nesses tempos de claustro, falar do alívio do sofrimento tornou-se um lugar-comum. uma coisa maravilhosa, pessoas de todos os cantos e de todas as idades e de todas as formações oferecendo cursos, palestras, escrevendo livros, sites e aplicativos conectando pessoas que precisam de algo com pessoas que querem dar algo - seja tempo, dinheiro, consultas médicas, sessões de terapia, compras no mercado. tudo para ajudar alguém a sentir-se melhor, a encontrar um alívio.
uma das práticas meditativas muito eficazes nesses tempos de claustro chama-se bondade amorosa. há muitos grupos fazendo a prática em encontros online, e muitas pessoas praticando em casa sozinhas. ela é muito simples. sentado ou deitado, você pensa num momento de alegria na sua vida, um momento em que você se sentiu muito bem. que pode ter durado dez minutos ou até um minuto, um momento mesmo. aí você se concentra nessa sensação boa e fica com ela por um tempo, respirando e espalhando esse conforto por todo o seu corpo. depois dessa primeira parte, que pode durar 5 ou 30 minutos, o que você escolher, você pensa em alguém de quem você gosta e manda essa sensação para ela. depois você pensa em alguém neutro e faz o mesmo. depois, manda para alguém que você ama, uma pessoa muito próxima. depois para alguém de quem você não gosta e, por último, para todos os seres.
se achar mais fácil, você pode mandar para toda essa galera as seguintes frases: que você esteja bem, que você esteja seguro, que você esteja livre de todo o mal, que você esteja seguro, que você esteja feliz. quando terminar, você abre os olhos e segue a sua vida.
a prática sempre começa com você. ah, se for difícil pensar num momento de alegria - sim, às vezes chafurdamos numa lama tão escura que não enxergamos n-a-d-a além disso -, você pode usar as frases para você também. e se for difícil memorizar, faça uma cola: escreva num pedaço de papel e leia para você, depois leia para a lista aí de cima. o efeito é o mesmo. e sabe por que a prática sempre começa com a gente? porque não dá pra cuidar de ninguém se não estivermos inteiros.
como dizem os sábios, a dor é inevitável, mas o sofrimento, não. eu fiquei pensando nisso esses dias, quando acordei me sentindo um animal rastejante. no caso, eu não era um animal que rasteja feliz. eu me sentia como um ser humano, mas com um desânimo massacrante que me fazia sentir como se eu fosse incapaz de andar sobre minhas duas pernas (claro, isso é como eu me sentia, porque eu não rastejei, ufa!).
ia me movimentando em câmera lenta e resmungando. quando me lembrei das semanas em que tive de ser uma madame como parte de um coach financeiro que eu fiz. imagino a minha cara na tela do computador da minha coach pra ela me dizer isso. e resolvi resgatar a decência e me vesti como se eu fosse SAIR DE CASA para trabalhar, prendi os cabelos, passei delineador nos cílios, preparei um café e o coloquei em uma bandeja bonita e organizada. fiz tudo o que eu tinha pra fazer naquele dia, uma reunião sobre um livro com uma editora e algumas outras coisas. trabalhei até o fim da tarde, e pouco a pouco a sensação de me arrastar foi passando e fui me sentindo uma pessoa, um bípede.
eu sabia que eu não tinha de grudar nas melecas que tinham acordado comigo naquela manhã. as melecas aparecem em qualquer dia - tristeza, desânimo, vontade de comer cinco bolos, pensamentos pessimistas acerca do clima, do corona, do brasil, da minha conta bancária. as melecas vão sempre aparecer. e quando sabemos disso, conseguimos impedi-las de grudar na gente. é como uma visita chata: você não vai oferecer mais um café, mas você não fica ignorando, porque a criatura está sentada no sofá da sua rica sala. e ela, sem café nem amor, vai-se embora. igual as melecas. ai que alívio.
depois do meu dia vestida como se eu fosse SAIR DE CASA, acordei e ouvi uma gargalhada saindo de dentro de mim enquanto preparava o meu café da manhã. isso já faz uns dias. desde então, escuto gargalhadas ao longo do dia. elas saem de dentro de mim sem mais nem menos, quando estou fazendo coisas tão banais como entrar no banho, encher uma caneca de café, preparar uma salada ou me deitar na cama de pijama e apagar a luz.

o café na bandeja, pra uma manhã decente


no fim, entendi por que mandar bondade pros outros é uma fonte de alegria. porque o amor, diferente de uma commodity, não é finito. o amor, quanto mais a gente dá, mais a gente tem. e se a gente começar com a gente, isso será um ótimo e seguro começo. o resto vem de brinde.

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