e como se livrar da nuvem cinza? do mau humor?

eu estava tomando café da manhã. no céu dava pra ver uma faixa cor de rosa. o dia estava começando. acendi uma vela, pra não precisar acender a luz (ou melhor, as luzes da cozinha, que parecem as de um set de TV).
cortei meus cabelos curtos. estavam compridos. e os salões fechados. e a minha cabeleireira, que não mora em são paulo, sem poder vir pra cidade cinza há meses. cortamos, minha filha e eu. cada uma com uma tesoura. ficou ótimo, mas eu não olhava como tinha ficado na parte de trás - eu sabia que eu pegaria a tesoura para dar uma ajeitada. e nem foi preciso. a evelyn finalmente veio para são paulo, e oito dias depois de eu ter feito uma meleca capilar, ela terminou o corte. bem mais curto, para arrumar todas as cortadas que eu tinha feito uma semana antes.
eu não me importo com cortar o cabelo. desde sempre. quando eu era pequena, minha mãe me levava num salão onde adultos assustadores cortavam meu cabelo com navalha. eu chorava. não lembro se minha mãe não via ou se via e não fazia nada. mas depois dessa fase, na adolescência, comecei a me divertir com cabeça raspada, cabelo descolorido, cabelos vermelhos. e cortei de todos os jeitos. e pintei de todas as cores. mas isso faz tempo. 20 anos. 30 talvez. fazia tempo que eu não cortava meus cabelos curtos. desde que meus filhos eram bem pequenos. essa coisa de guardar datas eu acho muito complexo. ou inútil.

corte penico, finalizado com navalha. eu tinha 4 anos

minha amiga japonesa me contou que no japão as garotas cortavam o cabelo quando um relacionamento acabava - para marcar um recomeço. e essa é a minha ideia. não ser outra. mas ser uma eu mesma melhorada. desta vez funcionando sem reclamar, sem carregar uma nuvem cinza escuro de pessimismo sobre a minha cabeça. porque ficar sem reclamar é uma coisa, mas ter otimismo é outra.
voltando ao café da manhã. lembrei que minhas fotos de cabeça raspada e cabeça vermelha não estão comigo. quando saí da casa do meu primeiro marido, não levei nossas fotos. só levei fotos que eram minhas. isso quer dizer que as fotos tiradas durante o nosso casamento - que durou alguns anos, entre namoro, morar junto, casar - não estão sendo comidas pelas traças que moram no meu apartamento. estão sendo comidas pelas traças da casa do meu ex-marido, lá na terra do tio sam.
e o que importa?

a única foto do casamento, em 1992

vivo há muitos anos sem essas fotos. desde os anos 1990, acho que 96, quando nos separamos. tenho uma única foto do dia em que casamos, eu vestida de verde da cabeça aos pés, uma coisa peter pan, linda de morrer. e já pensei em pedir algumas fotos para ele. já devo ter pedido. mas nunca levei isso a sério e por isso sigo sem essas fotos. grande coisa.
quero ter menos coisas. só as poucas que fazem sentido. e isso, devo admitir com alegria, tem sido intensificado durante essa infindável quarentena. do que eu preciso mesmo? mas as lojas estão fechadas! quantas roupas são necessárias no meu armário? e quantas canecas para tomar chá? o que tem para comer no almoço? com quantos panos de prato uma pessoa pode viver? e cobertores? um pra cada um? ou dois é melhor?
em 2018 eu fiquei 12 meses sem comprar roupas. e no ano seguinte eu fiquei sem dinheiro para comprar roupas. e o que seria um desafio de um ano virou um hábito. eu não compro roupas, nem sapatos. nem quase nada.
quanto custa uma calça? e uma blusa? no brechó custa 10 reais, 17 ou 25. depende se tem promoção no dia em que eu for. em quase três anos, comprei uma calça marrom acinzentada de um tecido que eu não sei o nome e que é uma calça para todas as horas, literalmente; uma branca e uma de moletom para o inverno.
"Dipa Ma encorajava seus alunos norte-americanos a simplificar suas necessidades materiais. Ao entrar na casa de um deles, ela exclamou 'Por que tantas coisas? Por que tantos pares de sapatos? Por que dez caixas de chá? Por quê? O acúmulo de coisas só faz aumentar o desejo de ter mais. Você não vai encontrar nenhum prazer em ter muito'." esse trecho é da biografia da Dipa Ma (Dipa Ma, the life and legacy of a buddhist master, sem tradução para o português).
é engraçado como tudo leva tempo. há anos eu vou me livrando de tralhas. mas além de nos livrarmos das tralhas, temos de parar de encher a casa com outras tralhas novas. e isso eu só consegui ficando dura de marré marré marré.
o problema é que se livrar do que está dentro da gente - e que não nos presta para nada útil, como raivas e medos e visões distorcidas de nós mesmos, também conhecidas como sombras - é mais demorado, é mais penoso, dá mais trabalho e, claro, nos deixa exaustos. mas creio que a vale a recompensa.
como dizia a bengalesa Dipa Ma para os seus alunos ocidentais, "live simply. a very simple life is good for everything." (viva com simplicidade. uma vida muito simples é boa para tudo)


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