nunca me senti tão rica

eu estou há dias pensando nisso. pensando em escrever sobre a minha riqueza. estou dura de marré marré marré. desempregada desde março. fazendo um trabalho aqui, outro ali, mas nada que pague todas as contas da minha pequena família.
e nesses meses de busca por um emprego, por frilas, por equilíbrio, por alegria para lidar com a vida familiar, eu tenho me sentido muito rica. parece irônico, e eu sei disso. 
cresci numa família endinheirada. hoje entendo mais do que entendia quando era criança. para as crianças, a menos que você seja criada por monstros, o dinheiro nunca é a parte mais importante da vida. e eu sabia que morava numa casa grande, que tinha um guarda noturno que nenhum amigo tinha e que podia ser sequestrada, segundo a minha mãe. mas eu não tinha noção da realidade como ela era. hoje eu tenho. 
minha família endinheirada se foi. casei duas vezes e nunca herdei nada dos casamentos. sempre achei uma barbaridade uma mulher com dois braços, duas pernas e um cérebro receber pensão de ex-marido. por isso nunca ganhei um centavo de ex-marido. só meus filhos, que têm direito à pensão de alimentos, mas cujo recebimento sempre depende de ações na (in)justiça brasileira. 
entre as atividades de uma desempregada está a enfadonha olhada atenta no Facebook todos os dias. eu nunca fiz isso na vida - tudo bem, o Facebook também não existe há tanto tempo quanto eu, eh eh eh -, e acho uma chatice infinita ver quem ama quem, fotos de pernas e de praias e de abraços ó-como-a-vida-é-bela-meu-deus-do-céu-somos-todos-tão-felizes. 
e eis que hoje, na minha tarefa de todos os dias de ficar rolando pra baixo a página inicial do Facebook, encontro um lindo texto sobre viver com menos. eu nunca morei numa quitinete. nem em paris, nem em lugar nenhum. mas senti uma alegria gigantesca - e muito conforto na alma - ao ler o texto da maria bitarello. 
coloquei meu grande carro - praticamente uma espaçonave - à venda. preciso pagar algumas contas e não tenho pai nem mãe nem tio nem ex-marido pra ajudar. o carro eu comprei pra ter durante muitos e muitos anos. acho desnecessário trocar de carro. então compro carros japoneses duráveis pra não precisar pensar em trocar de carro por sete, dez anos. mas desta vez não deu certo. o carro tá mais novo do que velho. na verdade, eu não vou trocar de carro. eu vou me desfazer do carro. o que me causa um pouco de aflição, quando penso na viagem à bahia que eu não fiz com o carro e à viagem ao pantanal que também não rolou. aí me lembro que carro custa tanto, o seguro, os impostos, o combustível, as revisões, as lavagens. bye bye tudo isso.
ficar sem um carro me faz lembrar de uma ida à praia, muitos anos atrás, com duas amigas que trabalhavam na TV. uma era editora, e a outra, apresentadora e mãe de dois filhos. num mergulho no mar, a tal da apresentadora - uma mulher inteligente, que não era modelo e manequim nem loira platinada nem magra de dar dó - perdeu o relógio de pulso. o filho dela, que devia ter uns 10 anos, ficou arrasado. e ela olhou pra ele e disse: "meu filho, a gente precisa perder coisas para ganhar outras". e não disse mais nada. 
e é sobre isso que a maria bitarello escreve. e que é tão verdadeiro, mas a gente, por algum defeito de fabricação ou resultado do sucesso do mundo que precisa que compremos muito e ininterruptamente, nega. diz ela: "A verdade é que quanto menos coisas você tem, mais fácil fica se desfazer delas. Até porque vai ficando claro que as coisas vêm, as coisas vão, não em vão. Você dá um casaco seu, alguém te dá uma mochila. Roubam sua bicicleta, você acha uma poltrona na rua. E segundo as leis elementares da física, se um objeto novo entra na vida de um residente de quitinete, algo obrigatoriamente vai ter que sair. Então você acaba ficando só com aquilo de que realmente gosta e/ou precisa."
simples assim. 
em italiano, tem uma expressão que é sobre isso, sobre deixar ir. lascia perdere. parece que só falar "lascia perdere" já é libertador. engraçado, porque a mesma professora que me ensinou lascia perdere dizia que ficar rico é fácil, mas ficar pobre é doloroso. giusi dava aulas no apartamento onde morava, em alguma alameda dos jardins, bairro ultra nobre de são paulo. fumava feito louca, e no meio da aula ia até a cozinha bater um pouco de nescafé com açúcar para preparar o café mais doce e cremoso do mundo. era maravilhoso. 
talvez era isso o que a giusi queria dizer: que ganhar era fácil, no sentido de ser indolor, mas perder era difícil. mas em toda dificuldade há aprendizados (eu não sei se isso estava claro para a minha pequena grande professora).
segundo o Buddha, o sofrimento vem das nossas tentativas de fazer permanente o que é impermanente. mas o que é impermanente? tudo.  
e todo esse blá blá blá e eu não falei sobre o meu sentimento de riqueza. é difícil falar sobre isso, porque parece que estou abrindo o meu corpo, pelo menos a parte do centro do meu corpo, tipo uma cirurgia para fazer uma biópsia na barriga. 
quando você leva uns pontapés da vida e cai de boca no chão, você começa a ver algumas coisas sob outro ponto de vista. num primeiro momento, a partir do chão, onde você está estatelado. mas conforme você vai se recompondo, limpando a boca e se levantando, você vai vendo outros pontos de vista, que na verdade são infinitos. e você vai percebendo que às vezes a sua vida é cheia de muitas coisas, e essas coisas nem sempre são as mais importantes. ou melhor, às vezes muitas dessas coisas não têm importância nenhuma.
cabeleireiro maravilhoso e caro pra chuchu; emprego lindo com carteira assinada, mas ambiente "pisando em ovos" todo santo dia; almoços em restaurantezinhos metidos à besta; um armário cheio de roupas e sapatos e colares; uma agenda lotada de compromissos antes, durante e depois do trabalho de 8 horas diárias; um e-mail corporativo importante que faz com que todas as pessoas te tratem suuuuper bem porque você trabalha num lugar suuuuuper legal.
não, eu não tinha uma vida estúpida. claro que não. mas eu tinha uma vida cheia de coisas que eu não sabia que eram dispensáveis. e então, quando você não tem mais um e-mail do lugar super legal onde você trabalhava, nem uma agenda lotada das 7h às 19h sem um minuto para respirar e não pensar em nada, nem dinheiro para ir no cabeleireiro de décadas e que você ama, você percebe que a vida segue alegremente. e que amigos seguem seus amigos e pagam o seu jantar. e que não tem problema não ter dinheiro para a gasolina - afinal existem outras coisas legais na vida além de viajar. e que não ter nada para fazer num dia pode ser glorioso, mesmo você ficando desconfiada da sua alegria. e que existem escolas públicas que poderão ajudar você a não falir.
a vida é cheia de altos e baixos. e tenho a impressão de que as pessoas mais divertidas, mais alegres e mais exuberantes são aquelas que sabem que pra descer, tem de estar lá em cima. e vice-versa: só sobe quem está lá embaixo. parece besta. e talvez seja. porque gostamos de dar voltas e falar coisas ininteligíveis e achar tudo complicado, porque isso parece cool.
faça-me o favor, darling. escolha uma vida mais simples e seja feliz. vou mandar bordar essa frase num quadrinho em ponto cruz, e colocá-lo na frente da minha cama.
  
  


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