os Buddhas entre nós

tem os que gostam do dia. e tem os que gostam da noite. desde sempre eu adoro acordar cedo. e como diz uma amiga minha, eu sou a única pessoa que ela conhece que acorda feliz - que não precisa de um tempo para passar do estágio oh-meu-deus-tenho-que-sair-da-cama-mas-estava-tão-bom-aqui para o estágio pronto-acordei-o-dia-começou-vamos-nessa.
tudo isso pra dizer que sair de casa quando o sol já foi dormir não é algo usual para mim. eu acordo antes do sol, e faço muitas coisas durante o dia. o que quer dizer que quando o sol vai dormir eu também quero ir dormir. ainda que o meu fisioterapeuta-bruxo teime em dizer que eu sou do tipo noturno, que deveria ir pra cama por volta das 4h e acordar depois do meio-dia, eu posso tranquilamente acordar às 4h30 ou 5h e começar a trabalhar às 6h.
mas era um desses dias em que eu achava que valia a pena sair de casa no horário em que normalmente estou jantando e me preparando para ler ou ver um filme ou conversar com os meus filhos. era um evento organizado por uma amiga sobre um tema que me interessa muitíssimo - na verdade misturava mindfulness com xamanismo e algo relacionado com as emoções.
fui. já estava escuro. tinha sido um dia chuvoso, mas na hora em que saí de casa tive a certeza de que chovia pouco. engano. chovia muito. mesmo com um guarda-chuva que tem o tamanho de um pequeno guarda-sol, eu ia me molhando enquanto dava passos na calçada encharcada.



a chata que vive dentro de mim sussurrava frases animadoras como "nossa, que idiota, você poderia pelo menos ter colocado a sua capa de chuva e suas galochas". eu estava muito a fim de ir a esse evento, e mandei a chata calar a boca. para percorrer as três pequenas quadras que separam o meu apartamento do ponto no ônibus eu me molhei bem. dos pés até os joelhos.
o ponto estava cheio de gente, mas na avenida não passava nenhum ônibus. as pessoas que andam de ônibus em são paulo são um tipo diferente de gente. como a cidade trata mal seus moradores, essa gente está acostumada a aguentar pontos de ônibus lotados, sem nenhum banco para sentar; tempos longuíssimos de espera; ônibus imundos (há anos me pergunto por que os ônibus em são paulo são tão sujos) e lotados. eu ia reclamar, mas olhando ao redor eu resolvi ficar quietinha. todos esperavam seu ônibus em silêncio e resignação. fiz o mesmo.
chegou o ônibus que me levaria ao evento. lotado seria uma forma elegante de descrever o número de pessoas que estava lá dentro. eu consegui entrar e fiquei entalada ao lado do motorista. 
ele era um homem simpático, que cumprimentava inúmeros passageiros. imagino que alguns passageiros criem laços de amizade com o motorista - pelo menos era o que parecia. todos conversavam, em um tom de cordialidade muito agradável, especialmente naquela noite chuvosa. 
todos molhados, todos cansados, "nossa que chuva", "puxa, tá cheio hein?". todos sorrindo, uma lição de bom humor e resiliência. mas o melhor ainda estava por vir.
"eu costumo levar cinco horas para fazer todo o trajeto, saindo do ponto final e voltando. mas só nessa volta, agora, estou dirigindo há três horas e ainda faltam mais duas", disse o motorista, sorridente. ele ia levar o DOBRO do tempo para fazer metade do trajeto. o que fazia em duas horas e meia naquele horário seria feito em CINCO horas naquela noite em que o trânsito estava pior do que ruim.
aquele homem sorrindo me fez ter certeza de que há muitos Buddhas entre nós. ele era um deles. 
cheguei ao evento molhada. tirei os sapatos e as meias e dobrei as calças. eu suava - tinha caminhado um pouco e o ônibus lotado é sempre quentinho. estava feliz da vida. 
eu estava fazendo algo para mim, e somente para mim. saindo de casa num horário em que nunca saio, tomando chuva, pegando trânsito e um ônibus cheio de gente bem humorada. e ainda tinha encontrado um homem sábio, sorridente e gentil.  
a verdade é que há sempre Buddhas entre nós.   

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