os cheiros do amor e a Brené Brown

tenho tentado fazer caminhos diferentes nas minhas caminhadas matinais com 5% de corrida. procuro entrar em ruas em que não costumo andar, acho que vou dar num lugar e dou noutro. e vez ou outra, a glória!, eu me perco, mesmo estando a poucas quadras da minha casa.
e foi assim no domingo. eu vinha numa rua e dobrei numa esquina em que eu não tinha certeza onde iria dar. não me perdi, só tive aquela sensação boa de oh essa rua dá na praça e eu nem sabia!
mas ao virar a esquina da ruazinha que eu não sabia ou não lembrava que dava na praça eu vi uma senhora que me fez lembrar muito a minha mãe. a estatura média, o corpo de uma pessoa que não é magra nem gorda, a roupa bem passada e combinando, o casaquinho de linha jogado sobre os ombros, o cabelo visivelmente penteado por um cabeleireiro e com uma boa dose de laquê. e o cheiro. o perfume maravilhoso que senhoras endinheiradas e de bom gosto usam! era o cheiro da minha mãe.
imaginei que esta senhora estava saindo da missa dominical, como a minha mãe. até os braços, que iam posicionados nas costas, onde as mãos se uniam, me faziam lembra a gerdinha.
a minha mãe era uma mulher muito limpa e muito prevenida. ela jamais saía de casa sem se arrumar. e por se arrumar eu não quero dizer passar um batom. era um ritual. banho, secar cabelos, maquiar-se, vestir-se, perfumar-se, e tudo muito demorado e atrapalhado. como ela estava sempre atrasada, eram sempre rituais nervosos. quando iam sair os dois - meu pai e minha mãe -, eles fechavam a porta do quarto e ficava aquela movimentação, banho, barulho de portas de armário sendo abertas e fechadas, cheiros de perfumes, toc toc toc dos sapatos batendo no chão de madeira. meu pai impaciente porque estavam atrasados, minha mãe nervosa porque o sapato dele não combinava com o cinto, ou o blazer estava surrado, onde está aquela camisa? ah, essa gravata é velha! mas eles ficavam prontos, abriam a porta do quarto e saíam triunfantes, meu pai bufando sempre nervoso, minha mãe andando toc toc toc com passinhos acelerados, tchau, beijos nos filhos, e partiam.
depois de cruzar a senhora que andava tranquila na calçada naquela manhã de domingo, eu tentei lembrar que coisas da minha mãe estavam no meu armário. lembrei de um lenço de algodão bege muito clarinho com pequenas rosas pintadas e de um tricô de lã pura tipo uma gola ou um minicachecol azul bebê - ela nunca usava, mas estava sempre no guarda-roupa. não sei que fim levaram. eu tenho um lenço vermelho com flores, belíssimo. tinha outro, verde-musgo claro, mas estava puído e eu não guardei.

achei uma foto com o lenço vermelho da minha mãe


mas nada do que eu tenho da minha mãe tem o cheiro dela. e esse era o maior medo que eu tinha quando ela estava morrendo - de nunca mais sentir o seu cheiro. mas isso, descobri depois, é uma bobagem. o cheiro de quem amamos sempre volta, só precisamos estar atentos. vez ou outra eu sinto o cheiro do meu amor dos 14 anos, e o cheiro do meu grande amor, meu ex-marido. também sinto o cheiro da minha avó. que doçura. sentir os cheiros do amor é maravilhoso.



voltei pra casa da caminhada feliz. não só porque tinha lembrado com amor da minha mãe, mas também porque depois de alguns anos de prática eu consigo sentir alegria por estar viva, por olhar pro céu, por sentir o sol me deixando morna. sinto alegria nas bobagens, e seguindo os ensinamentos do meu professor, consigo tomar meu café e aproveitar. não é fácil. eu me esforço. desgrudar de mim todas as lições duras e cretinas de toda uma criação é árduo. deus ajuda quem cedo madruga. não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. não desista nunca. uma mulher deve achar um bom marido. blá-blá-blá.
a gente vai se livrando do que não presta dia após dia, desde o dia em que nascemos até o dia em que vamos morrer. é uma atividade diária, como tomar banho ou escovar os dentes.
dois dias antes de cruzar essa senhora que tinha o cheiro da minha mãe eu tinha assistido a uma palestra da Brené Brown, uma mulher engraçada que dá aula de pesquisa na universidade do texas e cuja fala serve como fonte de inspiração para empresas e pessoas ao redor do mundo. ela é uma mulher ordinária, casada, dois filhos. e ela fala de um tema igualmente ordinário: a vulnerabilidade. e a sua relação com a coragem.
uma lindeza, uma riqueza, uma maravilha. esse vídeo dela está no netflix. tem também uma palestra dela no TED, vista por mais de 40 milhões de pessoas. sim, 40 milhões.
e o que tem a Brené? ela se expõe. não uma exposição ridícula, como ela mesma diz, tipo "depilando a virilha nas redes sociais". ela se expõe de outro jeito. e só agora, escrevendo e me lembrando do quanto eu fiquei babando ao ouvi-la, me dei conta do porquê fiquei assim, deslumbrada.
quando eu criei o meu primeiro blog, em 2008, eu estava sem conseguir dormir. o pediatra dos meus filhos havia dito para eu criar um blog, e eu tinha ficado perturbada com a sugestão. não sei quantos dias se passaram. mas eu criei o blog, escrevi, e voltei a dormir.
eu morria de vergonha. não contava pra quase ninguém que eu tinha um blog. e só escrevia ali porque era impossível não escrever. deve ter textos que foram lidos por duas pessoas. eu não me importava.
onze anos depois, eu falo tranquilamente que tenho um blog. em qualquer roda de conversa. mas a sensação de estar me cortando ao meio e mostrando as minhas vísceras nunca passou.
ninguém escreve para parecer belo, para parecer cool. quem escreve com a alma escreve porque não consegue ir pra cama e dormir sem escrever. e isso não traz n-e-n-h-u-m conforto. ao contrário. é como pisar numa caixa de ovos. crus. ou sobre um campo minado.
no pain no gain.
assim é que é.

Comentários

  1. Que linda estória, um alento na minha alma. Tentei publicar várias vezes. Mas não sei o qie aconteceu.

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