a febre alta, o cuidar e agradecer

eu nunca tinha pensado nisso. mas foi inevitável.
passei pouco mais de 24 horas fora de casa. o que, para uma mãe, é mais ou menos como passar uma semana num SPA. cheguei descansada e feliz.

depois de uma caminhada no escuro, surge o sol às 6h e pouco

na sala não havia ninguém, apesar de ainda ser cedo. achei um filho em cada quarto. um lendo. o outro debaixo das cobertas, com frio e com calor.
mais cedo naquele domingo eu estava sentada ao lado do meu professor e dávamos gargalhada. ele tinha lembrado como eu tinha me machucado durante um retiro de silêncio na bahia. tínhamos ido à praia, e a atividade era andar, umas duas ou três horas, até chegar às piscinas naturais daquela praia. eu me joguei num morrinho de areia, e caí de mau jeito. assim que me dei conta de que não tinha morrido - ah ah ah -, comecei a sentir muita dor. fui me mexendo e com grande alívio me dei conta de que podia me levantar. mães são capazes de pensamentos um pouco histéricos do tipo "ainda bem que não fiquei tetraplégica, afinal tenho dois filhos pra criar".
para andar até a parte onde havia as piscinas naturais eu fui falando um mantra que eu tinha aprendido no retiro. a dor era enorme, e enorme era a minha concentração e a minha fé de que andando e repetindo o mantra eu ficaria boa. e de fato foi o que aconteceu.
claro que depois que passa podemos dar gargalhada. isso foi uns anos atrás. e meu professor e eu gargalhávamos, lembrando disso - uma pessoa que se joga na areia achando que seu corpo é igual ao de uma criança de 5 anos, oh my god, isso é patético.
mas passadas as gargalhadas eu contei a ele como eu tentava respeitar o corpo, e como isso tinha a ver com aguentar dores e doenças e cuidar do corpo até curar. falei de como eu lidava de forma tranquila com as doenças dos meus filhos desde sempre. que achava ok a febre, a dor.
lembrei de tudo isso quando me deparei com um dos meus filhos com febre no fim da tarde do domingo. eu tinha viajado no sábado de manhã, e ao longo do dia tinha mandado só uma mensagem à noite, perguntando se eles já estavam em casa - um tinha uma festa, outro tinha passado o sábado na casa de um amigo. domingo, só mandei uma outra mensagem, dizendo aos dois que eu estava na estrada e que chegaria em três horas. um respondeu "ok". o outro, nada.
nunca PENSO na possibilidade de os meus filhos adoecerem quando eu viajo. senão eu não viajaria, simples assim. por quê? porque no meu "índice de mãe solteira" - ah ah ah. que criatividade infinita uma pessoa tem de ter pra pensar numa coisa dessas - eu chego aos 100%. isso não é feliz ou infelizmente, só é assim e ponto.
moramos longe de familiares, e meus filhos ficam sozinhos em casa quando eu viajo. eventualmente aviso uma amiga, quando vou ficar longe por mais de três dias. mas a cada viagem as pessoas da nossa pequena família vão se tornando mais independentes, e eu vou feliz, e eles ficam mais felizes ainda.

voltando da caminhada para ver o sol nascer

corta para o domingo fim da tarde. vou medir a temperatura do filho doente. 39 graus e uns pontinhos. usamos aqueles termômetros milenares, em que a precisão não é o forte.
banho. chá. remedinhos. disso tudo, ele disse que só queria um chá. fiquei furiosa, fiz o chá, e deixei a caneca com ele. não lembro de mais nada. ele queria ficar na cama dele, e não, eu não precisava ficar na cama ao lado.
a febre de 39 graus e uns pontinhos ficou assim por mais de 24 horas. mas banhos mornos e remedinhos foram aceitos, assim como suco de limão e gargarejo com água e sal.
eu fiquei me lembrando das gargalhadas que eu tinha dado ao lado do meu professor, do fim de semana maravilhoso que eu tinha passado nas terras onde será construído um centro de retiros, de como é bom fazer parte de um grupo que quer aprender o que o meu professor ensina, de como é bom ter luz no caminho da gente. ter um filho é a experiência mais concreta, mais sólida, mais pé no chão que uma pessoa pode ter. e cuidar de um filho doente é a experiência mais compassiva, aberta e amorosa que podemos ter. imagino que ser um cuidador, um enfermeiro, uma pessoa que se doa pra cuidar do outro, deva ser igual. mas no meu mundinho eu só conheço a experiência da mãe cuidadora, não da cuidadora que não é a mãe.
você olha primeiro para o outro. seus ouvidos ficam alertas 24 horas para ouvir ou escutar o outro. você observa o outro e fica tentando perceber o que deve ser feito para aliviar o sofrimento daquela pessoa. você pode esquecer que está com vontade de ir ao banheiro, deixar de sentir fome, e só se dar conta de que as suas pernas estão doloridas ao fim do dia, quando o cansaço toma conta de todo o seu corpo, e mesmo assim a gente consegue sorrir e terminar o que tem de ser feito - remedinhos, um chá, você está quentinho?, uma água ao lado da cama, onde estão as cobertas?, vamos arrumar esta cama, quer que eu apague a luz?, e um prato de sopa quentinha?, vamos escovar os dentes?, precisa de ajuda para levantar?, ah, vamos dormir, boa noite, você vai ficar bem, eu tenho certeza.
até ontem, eu não entendia por que algumas pessoas têm muita febre, e outras, não. para citar um exemplo doméstico, na minha casa nossas febres são totalmente diferentes. um tem febre de no máximo 38,5, outro tem febre um pouco mais alta, e o terceiro tem febres explosivas, se é que isso faz sentido. de uma hora pra outra, a temperatura sobe a 40 graus e lá fica. mas depois de um fim de semana rico, eu estava atenta e percebi. há pessoas que precisam de uma febre que os derrube. se não, eles não caem. o tamanho da febre é diretamente proporcional à força da pessoa. e isso me deu um alívio.
eu me sinto uma pessoa de muita sorte. muita. porque eu sempre tive anjos disfarçados de pessoas ao meu lado desde que tive o meu primeiro filho. se eu fosse escrever uma lista aqui, ia ficar longa e ia ser muito chato de ler. são muitos nomes.
o pediatra deles, sergio spalter, me dizia que filhos precisam ser criados por pais que acreditam que tudo vai ficar bem. e eu tinha certeza de que devia fazer isso.

do livro "Contos do despertar"

é engraçado. mesmo sendo a tal da mãe solteira 100% que eu acabei de inventar (ou perceber), a sensação de ó-vida-que-dureza-criar-esses-dois-sozinha sempre foi aliviada e, de uma certa forma, equilibrada. como se o peso fosse bem distribuído e a balança não ficasse pendendo 100% para um lado. sempre tinha a mãozinha suave de alguém me ajudando, nem que fosse a distância, o que normalmente era. 
eu agradeço cada segundo da minha vida de mãe. eu não seria quase nada do que sou hoje se não fosse por esses filhos que vieram pra esse mundo passando pela minha barriga. e mesmo o meu índice sendo 100%, eu me divirto muito, até nos dias de febre. o amor sempre nos ensina e nos melhora.
ps - depois de escrever este texto ficaram os dois filhos de cama. e dá-lhe paciência + amor.

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