os barulhos, o pão duro e o velho

ele andava muito devagar. eu queria passar mas a minha pressa não era maior que a minha civilidade. parei, fiz sinal para ele passar, mas ele não seguiu. em vez disso, deu uma gargalhada e me disse "quando o navio está afundando, primeiro vão as mulheres e as crianças". bem, ele era velho, andava de bengala e eu pensei meu deus, se a prioridade não é dele, de quem poderia ser?
agradeci, e passei, levando meu carrinho de feira. atrás de mim ia o moleque que tinha me ajudado a colocar as compras do supermercado nas várias bolsas que finalmente me acostumei a levar comigo - e a tirar do carro! - quando vou fazer as pouco divertidas compras da semana.
o velho tinha cheiro de quem não toma banho todos os dias. e tinha os olhos azuis brilhantes, cristalinos. fiquei pensando no fedor dele e em quanto isso devia ser totalmente irrelevante para ele. aliás, deve ser por isso que ele não toma tantos banhos quanto eu: ele tem menos incomodações, menos chateações e menos mania de limpeza.
fui embora do supermercado feliz de ter encontrado o velho. um sujeito delicado, elegante, com olhos límpidos. 
eu tinha almoçado num restaurante mui simpático, a uma quadra de casa. tinha chegado cedo, porque não conseguia trabalhar com os pedreiros da minha vizinha quebrando uma parede do apartamento dela bem em cima da minha cabeça. no restaurante, me sentei em uma das poucas mesas para uma pessoa. e fiquei ao lado de dois homens que conversavam animadamente. e então escuto o seguinte: "as próximas três gerações estão garantidas". não tinha como não ouvir. eu, comendo sozinha, devagar, e o cara falando com o amigo dele. "tu sempre teve fama de pão duro", disse o outro. juro que eles eram gaúchos. falavam como gaúchos, e acho que pensavam como gaúchos também. ai que horror! e então o pão duro contou que tinha uma conta num banco da qual ele tinha esquecido! lembrou dela, da conta, numa conversa com a mãe dele. e contou como tinha começado a economizar aos 14 anos, quando recebia mesada. "ganhava 500, guardava  250".
eu estava me sentindo humilhadíssima. aos 41 anos, com nenhum dinheiro guardado, trabalhando muito, criando dois filhos e devendo pro banco. baita merda.
eu estava feliz. a santa nalva ligou bem cedo e disse que ia tomar um remédio e que chegaria mais tarde. sugeri que ela ficasse em casa, dormindo, para a febre passar. e senti uma felicidade ao saber que poderia trabalhar o dia inteiro em casa s-o-z-i-n-h-a. mas eis que no meio da manhã começam umas marteladas surreais, e o barulho vinha de cima de mim. era o começo da obra da nina, obra essa que ela vinha adiando há anos.
mais cedo ainda já tinha me incomodado com outros barulhos. quando saí de casa para levar as crianças pra carona da escola, vários carros de polícia passaram por nós. um deles passou no farol vermelho, um pouco antes das 6h30, numa faixa de segurança onde passam trocentas pessoas. ninguém foi atropelado, e os monstros seguiram. depois, na volta pra casa, um policial numa moto passa pela calçada, outros dois entre os carros. uma moto fecha uma faixa de uma avenida enorme. chego em casa, e quando saio para andar, helicóptero, e vários carros de polícia parados nas esquinas.
o porteiro que assiste à record me conta uma história cabeluda. no fim os policiais aparentemente não mataram ninguém, mas brincaram de corrida de carro e se divertiram. ensino meus filhos a estar sempre longe deles.
e enquanto andava por entre ruas arborizadas, limpas e cheirosas, pensava em como se diferencia uma pessoa boa de um bandido.

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