dezembro, o mês perfeito para desentulhar a vida da gente

quanto menos você tem, mais livre você é.
isso não fui eu que inventei, e na verdade ainda estou engatinhando na arte de ter uma vida simples, não cheia de coisas, mas ao contrário: só com as coisas necessárias.
(em inglês o oposto de só ter as coisas necessárias é uma palavra maravilhosa, cluttering. e o ato de se livrar das coisas inúteis é decluttering. não temos em português uma palavra com esse significado. na verdade a tradução de clutter é bagunçar, entulhar. então declutter seria desentulhar. a tradução do dicionário é limpar ou criar mais espaço em algum lugar.)
foi uma bobagem. eu estava sentada em frente ao meu computador, que é a minha ferramenta de trabalho, e fui ver alguma foto no meu celular. lembrei que havia fotos tiradas havia mais de um ano ali. eu até transfiro pra minha máquina, mas não apago as do celular. quem sabe eu vou precisar de alguma foto, não é mesmo? e elas vão ficando. foi então que senti uma coceira nos dedos e apaguei todas as mais de mil fotos e deixei somente três, que serão necessárias para o trabalho que estou fazendo agora.
senti um suave alívio. e lembrei que falta meter a mão no meu armário. daqui a uma semana vai rolar um swishing no meu pequeno apartamento, quando amigas trazem pelo menos uma roupa em bom estado pra dizer adeus e, depois que todas provaram o que interessa, toco o gongo e cada uma leva pra casa o que mais gostou. e sempre antes de um swishing é hora de dar uma geral no armário - limpar, organizar e fazer a remoção do que já virou pano de chão, do que não serve mais, do que eu não gosto mais e eventualmente do que eu não uso mais, mas ainda gosto.
o assunto sempre me anima. desde que eu era pequena, sempre adorei organizar coisas. mas tenho uma adoração especial por armários quase vazios. pode ser o do banheiro, a gaveta com documentos, o guarda-roupas, o armário das panelas, a gaveta de panos de prato. ver um armário cheio me dá coceira nas mãos. e não precisa ser o meu armário, ah ah ah. a coceira é democrática e se manifesta quando estou diante de QUALQUER armário. e, pior, ou melhor, dependendo do ponto de vista, eu tenho energia para arrumá-lo. o que, claro, só faço com o consentimento do dono do entulho. uma amiga em especial percebeu essa minha alegria muitos anos atrás, e ainda que rolem elogios (e gargalhadas quando lembramos quando passei duas tardes na casa dela enchendo sacos enormes de roupas para doar), ela sempre lembra que é um pouco esquisito esse meu comportamento.
e essa mesma amiga, que eu encontrei esta semana sem planejar, me disse que sonha em morar em um pequeno apartamento. as palavras são dela. não, ela não mora em uma casa gigante. mas a casa dela está longe de ser pequena. eu fiquei pensando no sonho dela, do pequeno apartamento. sonhar com ter coisas menores é ir na contramão do que nos é dito todos os dias por todos os lados. ou alguém tem amigos que querem morar em lugares pequenos, ter carros pequenos e guarda-roupas idem? ou melhor, amigos que não têm casa, nem carro, nem guarda-roupas? eu tenho, mas são poucos. lembro de três. e eu tenho muitos amigos, e milhares de conhecidos.




dezembro é o mês perfeito para pensar em desentulhar a vida da gente. em vez de comprar calcinha nova para o réveillon, pensar onde passarei o natal ou comprar presentes para trocar no dia 25 de dezembro, vou esvaziar a minha casa, que já é bem vazia. vou meter a mão no armário do meu quarto, mas também no do quarto dos meus filhos. os livros também entrarão na operação "desentulha, tita". e as panelas e os armários de louças da cozinha, idem.
há ainda os bens intangíveis que precisam entrar na operação "desentulha, tita". são contatos no celular e na conta de email, a lista de amigos (saem muitos, entram outros), meus modos rudes de quando estou com raiva, clientes com quem eu não irei mais trabalhar.
o armário onde a comida é armazenada no meu pequeno apartamento já está sendo poupado de entulhos de sacos e mais sacos de farinha arroz feijão lentilha macarrão faz um tempo. foi muito sutil perceber que toda vez que eu digo "nossa, a comida está acabando e tenho de ir ao supermercado urgente", eu ainda consigo fazer no mínimo quatro almoços. ou seja, as coisas não estão acabando. só não há três quilos de açúcar empilhados, nem 16 sabores de chá.
na bela biografia de Dipa Ma ("Dipa Ma, the life and legacy of a buddhist master, Amy Schmidt, editora Blue Bridge, sem tradução para o português), diz que "Dipa Ma encorajava seus alunos americanos a simplificar suas necessidades materiais. ao entrar em uma casa, ela falou 'por que tantas coisas? por que tantos pares de sapatos? por que dez caixinhas de chá? por quê? acumular coisas aumenta nossas vontades. vocês não vão encontrar nenhum prazer em ter demais'".
eu me levantei e fui até o meu armário. contei oito calças, mais três de malha, mais três macacões e quatro saias. numa conta rápida posso ficar 18 dias usando alguma calça/saia/macacão sem repetir e sem precisar lavar roupa. socorro.
eu estava quase comprando uma calça linda que eu vi num bazar - bazares de natal são um antro de perdição - e estava tentando me convencer que eu precisava muito DAQUELA calça que me parecia tão confortável, tão bonita, tão imprescindível.
é inacreditável que para conseguir ter de fato uma vida simples leva anos. são livros e mais livros lidos, textos e mais textos escritos, swishings divertidos a cada seis meses, arrumações nos armários toda vez que eles deixam de estar bem vazios, adoção de estratégias simples como escrever em uma lista o que eu quero comprar até o querer ir embora - ou até eu ter certeza de que aquela compra é necessária mesmo.
na nossa fantasia (na minha, pelo menos, mas não creio estar só), temos medo de que uma vida com menos COISAS seja o mesmo que ter uma vida com menos GRAÇA. por que não comprar só mais uma calça e aumentar a coleção no armário? afinal, este ano eu só comprei uma calça que estava com preço reduzido por conta de uma liquidação, outra porque era necessário para passar uma semana em retiro e mais outra, usada, de uma amiga, por um preço ridículo. a questão não é o quanto eu estou pagando (desculpa, tita, mas esse raciocínio é tão bizarro quanto a frase "de graça, até injeção na testa", que é o mantra de uns e outros). e sim por que estou comprando algo de que não preciso.
e o antídoto para pensamentos e comportamentos sinistros como compras que entopem armários e esvaziam a conta bancária em maior ou menor grau é simples. "por que eu vou comprar essa trolha*?" afinal, eu sei que eu preciso de pouco. muito pouco.
as chances de sermos felizes em dezembro e em todos os meses que estão por vir é grande.

*trolha: qualquer coisa incômoda, ruim, bagulhenta. em "Dicionário de Porto-Alegrês", Luís Augusto Fischer, Ed. Artes e Ofícios.

eu olhei e pensei que era uma coruja na minha horta. isso é sorte?

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