quarentena, meu amor
A aula começaria às 8h. Meu professor não é brasileiro. Ele é
pontual.
Moramos num apartamento ensolarado e bonito, mas que, com o
passar dos anos, foi ficando pequeno. Quando viemos morar aqui eu tinha 35
anos, meu filho, 3, e minha filha, 11 meses. Isso faz 14 anos.
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estudos na cozinha |
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e estudos na sala |
Assim que começaram as aulas em casa, antes de começar a
quarentena determinada pelo governo do estado de São Paulo, meu computador
passou a ser usado o dia inteiro. Meu filho estuda de manhã e à tarde. Assim,
comprei uma máquina nova, para conseguir organizar os trabalhos da mãe e os
estudos do filho. Nessas primeiras semanas, minha filha ainda não tinha aulas
pelo computador. Ela só recebia lições e as fazia à tarde. Dividíamos a mesma
máquina, eu usando de manhã, ela, à tarde.
Mas passadas algumas semanas, e eu não sei quantas, porque
nesta quarentena a minha falta de noção de tempo aumentou barbaridades, minha
filha passou a ter aulas online também.
Agora ficam os dois, um em cada canto da sala, sentados na
frente da mesa e com uma tela no nariz deles. Todos com fones. E todos usando
um tom de voz civilizado quando vão fazer uma pergunta ao professor. E assim
viveríamos felizes pra sempre. Só que não.
Minha máquina passou a ser usada pela minha filha de manhã,
para assistir às aulas, e à tarde, para as lições – vídeos, vídeo-aulas, instruções
das tarefas, trabalhos de arte que têm inspiração no Andy Warhol, redações,
resumos das aulas e mapas mentais, muitos mapas mentais.
Neste momento estou escrevendo no meu quarto. Há dias em que
fico na cozinha. Mas lá sempre tem alguém que entra para pegar um copo d’água,
uma fruta, passar um café na pausa entre as aulas. E tem dias em que minha
filha prefere a grande mesa da cozinha à pequena mesa de trabalho da sala.
Ter filhos em casa tendo aula é uma experiência rica. Eles agora
entendem como uma mãe trabalha em casa. Mesmo estando na frente deles, eu não posso
perguntar nada porque eles estão em aula. Se alguém fizer barulho – uma
pergunta a um professor, a leitura de um texto ou até uma gargalhada –, quem
está na sala vai se distrair.
A parte da organização e limpeza da casa me alegra particularmente. Se eu não tirar meus livros e cadernos de cima da mesa, minha filha não terá espaço para colocar o caderno dela. Se não lavarmos a louça entre uma refeição e outra, não poderemos preparar a refeição seguinte. Se não limparmos a casa, vamos morar numa pocilga. Simples assim.
A parte da organização e limpeza da casa me alegra particularmente. Se eu não tirar meus livros e cadernos de cima da mesa, minha filha não terá espaço para colocar o caderno dela. Se não lavarmos a louça entre uma refeição e outra, não poderemos preparar a refeição seguinte. Se não limparmos a casa, vamos morar numa pocilga. Simples assim.
A casa que ficava limpa misteriosamente entre uma ida à
escola e a volta pra casa não existe mais. Ninguém mais sai para ir à escola. Todos
estão em casa para fazer o café, o almoço, ver o que vamos jantar, recolher a
roupa seca no varal, levar o lixo para o contêiner na garagem.
Voltando à minha aula das 8h. Faltavam menos de cinco
minutos para começar. Eu já tinha chamado a minha filha, que dormia na minha
cama, mais de duas vezes. Disse que a minha aula começaria logo. Ela se mexeu,
virou, rolando do centro para o canto direito da cama. Mas não saiu do quarto. Nem
da cama.
Eu estava pronta. Depois do banho e do café da manhã, tinha
pegado uma caneca com chá, meu celular, papel e caneta. Olhando pra criatura
imóvel na cama, quase fui assistir à aula na cozinha. Aí me lembrei que estou
sem fones (os que eu usava eu emprestei pra minha filha, já que os dela haviam quebrado);
que todos entram na cozinha para tomar café da manhã e, depois, para pegar
lanchinhos; e que eu queria assistir à aula no meu próprio quarto, onde, quando
fecho a porta, normalmente ninguém entra.
Abri a janela, ajeitei meu celular sobre duas almofadas na
minha frente, me sentei na poltrona e finalmente minha filha escorregou para
fora do quarto, tão sonolenta, tão silenciosa, que parecia uma minhoca
rastejando suavemente.
A aula começou. Eu estava com raiva e suava. Me lembrei dos
limites. E do meu mantra número um: mãe também é gente. Por que é tão difícil
colocar limites onde eles têm de estar? Somos educadas para nos contentarmos
com pouco. Fazer pouco. Ganhar pouco. Ter pouca alegria.
Ao nos tornarmos mães, passamos a ocupar o nada honroso
último lugar da lista. De todas as listas. Todos têm prioridade. Menos a mãe.
Péssimo exemplo. Filhos aprendem que o lugar da mulher é no
fim da fila. Filhas aprendem que, sendo mulheres, elas também ocuparão o último
lugar na fila.
É preciso uma vida inteira para mudar isso. Porque a falta
de limites gruda na gente feito cola. São necessários muitos dias, muitos meses
e muitos anos para ir desgrudando da gente a crença de que o nosso lugar não é
no começo da fila – ou, pelo menos, no meio.
Mãe também é gente. E pra isso este claustro compulsório que
estamos vivendo é muito didático. Fechados em casa, podemos perceber se temos
ar suficiente para respirar nesta vida que escolhemos para nós. Se o ar faltar,
é preciso mudar algo. Encontrar jeitos de viver que nos deem ar, força para
realizar o que quisermos, inteireza para chorar quando for preciso lavar a alma
e coragem para morrer de rir todos os dias, pelo menos.
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