as dores que passam

o médico que fez o parto do meu filho - o meu primeiro parto - dizia que as mulheres só têm um segundo filho porque esquecem a dor. e assim sucessivamente.
pois além de eu ter esquecido as dores do primeiro parto a ponto de ter tido depois o segundo parto, também esqueci da dor que é pastar na fila do consulado norte-americano mendigando um visto para cruzar a fronteira e pisar em solo estrangeiro.
tinha esquecido também que o governo norte-americano faz o mesmo tipo de pergunta para um bebê de dois meses - idade em que meu filho teve o primeiro visto, quando fomos morar lá naquelas terras longínquas - e para mim.
o preenchimento do formulário cujo nome não guardei leva quase duas horas. como o visto que eu estava pleiteando era para a família inteira, passei uma manhã em frente à tela do computador respondendo a perguntas como "você já falsificou um visto?" ou "você já viu alguém falsificando um visto?" (ou seria falsificando um passaporte?, não lembro). com mais paciência do que coragem, preenchi o formulário de nós três.
aí tem a etapa que eu desconhecia: recolher as digitais - ai meu deus, será que é assim que se diz pro bizarro procedimento? é o mesmo pra quando fazemos RG ou passaporte. a diferença, neste caso, é que a pessoa precisa registrar suas digitais pra viajar.
e então temos o grand finale, que é pastar numa filha nem tão longa, mas que tem nove "filiais". sim, dez filas de pessoas, uma fila ao lado da outra. todos de pé, sem andar um passinho pra frente por cerca de uma hora.
duas mulheres atrás de mim conversavam. uma ia visitar primos, a outra, sobrinhos. uma trabalhava numa penitenciária no interior de são paulo. contava que ali havia "uns velhos safados que são pegos e uns psicopatas". esses, dizia, não têm cura. são inteligentes e bonitos, mas não têm cura. eu achei o papo muito lúcido pra uma fila louca daquelas. ela também contava de rebeliões - numa delas, ficou cinco dias como refém, mas ninguém a machucou. aí concluiu dizendo que nas férias tinha saudades de adrenalina do trabalho. oh my god!
da fila com nove outras ao meu lado passamos para a simpática fila da segurança - quando o passaporte que levamos é olhado pela segunda vez, e onde um jovem segurança grita as instruções para entrar na cabine de segurança.
entramos em grupos de quatro. a bolsa passa pelo raio-x como num aeroporto, e o ser humano passa pelo detector também tal qual o aeroporto. e a buzina tocou.
o gigantesco e incrivelmente bonito segurança que está do lado de lá do raio-x para humanos pede para eu sentar e tirar os sapatos. finda a retirada, ele pede para eu calçá-los novamente. "mas você nem viu", eu falo. ele faz que sim com a cabeça.
então sou autorizada a sair da sala da segurança, onde passo por uma mulher segurança e paro noutra fila. nesta, meu passaporte é olhado pela terceira vez, e eu sou direcionada a mais uma fila. agora o ambiente fede a excesso de gente. e o rapaz magrinho que me atendeu diz que ali ficarei 40 minutos. mas era otimismo dele.
estamos todos bem vestidos, bem penteados, bem lavados. ninguém vai ao consulado norte-americano de qualquer jeito.
a fila demora outra hora. e quando você chega ao primeiro lugar, um rapaz o encaminha para a última fila, a do guichê. onde um cônsul irá entrevistá-lo.
na minha vez, há troca de funcionário. um sai, pedindo para eu aguardar um minuto, outro chega, e agradece pela minha paciência. ele liga cabos, coloca o fone de ouvido, liga o microfone.
eu entrego os três passaportes, mais os três passaportes vencidos onde havia vistos também vencidos.
ele olha os documentos, olha pra tela do computador, digita algo, olha, digita, olha. nessas alturas ele já deve saber a cor da calcinha que eu costumo usar. eu tento fazer cara de tá tudo bem, mas fico tensa. não tinha levado nenhum documento além dos passaportes e certidões (de nascimento das crianças, de casamento minha). me lembro do meu primeiro pedido de visto, onde achei humilhante dizer que era estudante, não tinha renda e quem me bancava era o meu marido.
segue o diálogo, após um ou dois minutos que pareceram uns 45:
- pra onde vocês vão?
- nova york e boston.
- o que você faz?
- sou editora.
- há quanto tempo?
- cinco anos.
- fala inglês?
- sim.
- morou lá?
- sim, passei pouco menos de um ano quando meu ex-marido estudou em boston.
- harvard?
- não, MIT.
- ok. your visa has been approved. and your passports will arrive in ten days, thank you.
a cara de alívio que eu fiz deve ter sido igual à cara de alívio que todo mundo faz quando escuta a frase que eu escutei. algumas pessoas choram, é verdade. mas a questão é que queremos ser aprovados pra poder pisar no país onde, diziam, as ruas eram calçadas com ouro.
a gente fica feliz. aliviado. mas também se sentindo um idiota. e eu combinei comigo mesma que esta foi a última vez.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

a minha longa história com o dr. kong

sobre a ânsia de nunca (querer) parar

o farol fechado e a pedestre boba (e feliz)