aprendendo a dançar na chuva

era um SPA. compulsório, mas ainda assim um SPA.
labismina planejou os dias em que ficaria sozinha no feriado de natal e ano-novo. planejou do jeito que ela considera planejar. dormir, andar. correr, nadar, ler alguns livros da pilha que só cresce na mesinha de cabeceira. um ou dois dias em retiro (dentro da própria casa) e uma dieta daquelas que nem é bom anunciar entre os amigos porque não tem nada de encantador.
como todo planejamento, as ideias de labismina foram abruptamente abortadas. o primeiro dia sozinha em casa transcorreu normalmente. ainda que o silêncio fosse o começo do retiro que não aconteceu. ninguém conversando, ninguém abrindo nem fechando portas senão ela mesma, nenhum ruído de passos, nenhum grito, a palavra mãe não sendo pronunciada nem uma única vez. talvez a única anormalidade tivesse sido o cansaço. labismina sentia-se exausta. justo no começo das férias. mas ela nem desconfiou do que viria.
o segundo dia começou como começaria o segundo dia de qualquer pequenas férias de uma mulher cujos filhos viajam. ela acordou cedíssimo, demorou pra sair da cama, mas conseguiu começar a prática esportiva daquela manhã a tempo de voltar para casa e assistir uma aula às 8h. era preciso estar atenta ao relógio.
ela ia caminhando e de vez em quando olhava a hora. daria tempo. as costas doíam um pouco, ela não sabia se deveria parar e alongar-se, seguir andando ou dar uma corrida. mas quem resolveu a questão não foi ela, e sim um crec nas costas. ops. andando muito devagar, ela foi até o parquinho cercado para crianças, que fica no canto mais lindo da praça, de onde se vê três árvores enormes, com troncos largos e raízes aparentes. alongou-se brevemente e foi pra casa andando devagar, muito devagar.
café, computador ligado, ieba!, aula com o lama que estava desde agosto em portugal. labismina estava animadíssima. essa aula parecia ser tudo o que ela precisava para fazer o seu retiro de um ou dois dias e a sua dieta:
- algumas orientações sobre como limpar karma não-saudável do ano que termina na forma da prática de Vajrasattva
- lembretes para estabelecer intenções claras para o ano que vem
- encorajamento para fazerem o sábado dia 22 um dia de prática pessoal, lua cheia. 
demorou um pouco para conectar o vídeo. e quando conectou, surpresa! não havia som. não, dizer que não havia é muito pessimista. podia-se ouvir um murmúrio, alguém falando muito distante. labismina chorou de raiva. queria ter viajado para o interior, para assistir à aula ao vivo, mas com o cansaço e o pouco dinheiro, achou prudente ficar em casa. o choro durou pouco, a raiva durou um pouco mais. assim é a vida, pelamordedeus, pensou.
então vamos ao que interessa, já que não haveria aula para as 31 pessoas que, como ela, estavam online às 8h. o dia da faxineira caiu no mesmo dia no natal, a casa estava suja. mãos à obra. ainda com o corpo quente da caminhada, labismina dedicou a manhã toda à limpeza doméstica. suava como se estivesse correndo no parque. as bochechas vermelhas - labismina tem a pela muito branca, que fica vermelha como uma maçãzinha quando ela faz esforço -, e ela dava risada cada vez que passava na frente de um espelho. cada vez mais suada, cada vez mais vermelha, cada vez mais descabelada.
casa limpa. hora de organizar o retiro - basicamente ter certeza de que há comida em casa para um ou dois dias de silêncio. a dor nas costas foi aumentando, labismina achou por bem deitar-se. antes, anotou num pedaço de papel: definir dieta.
os planos para as férias pareciam estar escorrendo por entre os dedos das mãos. a dor é uma ótima aliada para diminuir a velocidade de qualquer pessoa, até da labismina. e assim está sendo.
sem retiro, sem dieta, sem caminhadas ou corridas ou nadadas. sem tomar sol, sem andar de bicicleta. no SPA em que labismina está há duas atividades essenciais diárias: ler, meio sentada meio deitada com uma bolsa de água quente entre almofadas e travesseiro e as suas costas, e cozinhar. e para alegrar os dias no SPA compulsório de repouso, há práticas de meditação e banhos mornos com hidromassagem nas costas.





não é possível dormir uma noite inteira quando se tem dor. no caso desta história, não há dor ininterrupta, só quando há movimento. portanto, quando labismina quer se virar de um lado para outro na cama, ou quando quer tomar um gole de água, ela precisa se mexer da forma mais lenta possível até ajeitar-se novamente.
por que contar uma história de dor quando o google faz um doodle com presentes voando do céu, já que hoje comemora-se o natal? porque labismina está conseguindo passar ótimos dias no SPA compulsório. quando vem a dor, ela procura parar o movimento e respirar fundo. o que muitas vezes não é possível. então ela foi remexer a caixa de remédios que é mantida no armário vermelho da cozinha e encontrou um vidro intocado de um remedinho para ansiedade, feito com ervinhas por uma farmácia pra lá de natureba. é um medicamento muito apreciado por pais e médicos e professores em casos de crianças que não ficam quietas, que não dormem quietas, que não vivem quietas. labismina concluiu que as bolinhas chamadas de ansiodoron seriam maravilhosas para o caso dela, que foi parar num SPA dentro da própria casa e sentia um pouco de falta de ar.
herculano, irmão de labismina, manda fotos e mensagens doces para a sua irmã. herculano mora numa ilha. cheia de carros e de gentes, mas uma ilha. e como toda ilha, cheia de praias. ele não sabe das dores de labismina. aliás, quase ninguém sabe. isso é lá assunto para ser tratado na época natalina, quando as pessoas deixam em casa o bom senso e vão comprar presentes e comidas e bebidas e saem para viajar para participar de jantares barulhentos e perfumados e alcoólicos?





labismina achou por bem encontrar amigos na noite de natal. ficar sozinha e ir dormir às nove, aí já é demais. encontrou uma amiga que está na cidade cinza. disse que não queria passar a noite sozinha. a amiga também não. "Cansa ser não conformista às vezes. A pessoa não conformista tá sempre sozinha e nadando contra a corrente hahahaha", escreveu a amiga. labismina achou engraçado.
é a terceira vez que passa o natal sem a família, desde que deu à luz seu primeiro filho, em 2002. a primeira vez os filhos passaram com o pai, e ela passou na família de amigos. a segunda vez, os filhos passaram com os avós, e ela também passou na família de (outros) amigos. desta vez ela irá para a casa de um casal de amigos da amiga. ou seja, não será um jantar natalino em família, mas um jantar natalino com pessoas avulsas, especificamente "uma gauchada", como disse a amiga da labismina. os filhos estão na casa do avô, que fica a 1.150 km da cidade cinza.
ela vai assar um bolo de frutas de natal. e talvez faça uma salada de massa vegana - receita adaptada, sem os cubinhos de presunto que tinha todo ano no jantar do dia 24 na casa dos seus avós maternos.
que ironia. primeiro ela queria ficar sozinha. depois cogitou férias no uruguai - mas pensou e pensou e concluiu que quem não tem dinheiro não deve viajar. por fim, animadíssima, programou uns dias felizes na cidade cinza sozinha. e acabou num SPA.
passar uns dias sozinha é uma boa lição, pensou. uns dias sozinha e com dor, é uma baita lição. sozinha com dor e sem reclamar, ah, uma lição maior ainda. mas o que a surpreendia era passar uns dias sozinha, com dor, sem reclamar e ainda poder aproveitar.
o que a fez lembrar de uma frase que ela viu num ímã de geladeira durante uma viagem, que ela gostou tanto que comprou para dar de presente ao seu irmão herculano. "viver não é esperar a tempestade passar. é aprender a dançar na chuva."
   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

a minha longa história com o dr. kong

sobre a ânsia de nunca (querer) parar

o farol fechado e a pedestre boba (e feliz)