bem, vamos esperar (o carnaval passar)

eu moro no meio do carnaval. eu moro dentro do carnaval. a uma quadra para o norte e para oeste, cartazes avisam que as ruas estarão fechadas pelos próximos quatro dias.
saí de casa cedo para fazer compras. as ruas já estavam fechadas. o mercado municipal de pinheiros funcionava pela metade, ou talvez menos do que a metade. "íamos fechar às 15h sábado passado, mas tivemos de fechar antes. as pessoas entravam, pegavam mercadorias e saíam", me conta bel, que me atende no entreposto das feijoadas. a cena é um pouco desoladora, luzes apagadas, o mercado vazio em pleno sábado de manhã, que é quando o lugar costuma ser lotado de moradores e turistas ávidos por comidas e temperos especiais, vendidos com fartura e a preços baixos.

rua dos pinheiros


rua cunha gago

sábado passado começou o carnaval na região. eu sabia, mas não sabia que as estações de metrô que servem o bairro seriam fechadas. fui até o ponto de ônibus mais próximo para ir ao encontro de uma amiga, fazer uma reunião de trabalho. a ideia de cancelar uma reunião no meio da tarde de um sábado só por causa do carnaval me pareceu um exagero.
no ponto do ônibus, ondas de pessoas chegavam e embarcavam sem parar. pessoas que não tinham ideia de onde estavam, muito menos de qual ônibus poderiam pegar para chegar se não em casa, perto de casa.
vejo um senhor no ponto, e ele me conta que está esperando o aclimação. digo que também vou para aqueles lados, e sugiro que peguemos qualquer ônibus que vá em direção à avenida paulista. ele me diz que não. que não vai andar. que o aclimação o deixa a quatro quadras de casa. passa o aclimação, mas a indicação do destino, depois de piscar aclimação, diz são paulo-morumbi, que é uma estação de metrô que fica para o lado oposto ao que o senhor e eu estamos querendo ir. ele se nega a entrar no ônibus.
e então me dou conta de que muitos ônibus que estão subindo em direção à zona norte indicam são paulo-morumbi no painel. o que já era confuso - ponto cheio, foliões embriagados e perdidos, ônibus que nunca sobem pela avenida rebouças passando por ali porque o bairro de pinheiros está parcialmente interditado para trânsito - fica um pouco mais. são paulo nunca foi uma cidade que primou por placas, indicações e boa sinalização.
descubro que o senhor se chama raul, e que enxerga muito melhor do que eu. digo que vou esperar o aclinação com ele, e ele várias vezes me diz "ainda bem que a senhora está aqui comigo".
ele não quer sentar. eu me sento, respiro fundo, e minutos depois me levanto. raul me pergunta se eu estou prestando atenção. sim, estou. muitas pessoas passam por nós, e ele fica irritado. "vão tomar no cu. puta que o pariu", diz ele. parece que as palavras saem da boca dele sem uma intenção clara, sendo só um desabafo, uma interjeição longa que demonstra a sua exaustão.
eu penso em atravessar a rua e pedir carona. mas acho que raul não me acompanharia. depois penso que seria difícil achar um motorista não embriagado ali e que achasse ok parar para uma mulher e um senhor de cabelos totalmente brancos numa tarde de carnaval em que alguns grupos se aglomeram na mesma calçada que nós para fazer xixi nos muros das casas e/ou vomitar.
"a senhora tá com esperança, né?", raul me diz a cada 5 minutos. impaciente, ele vai até a janelinha do motorista dos ônibus que param no ponto para alguém subir ou descer e pergunta se o aclimação está fazendo a rota naquela tarde. sim, está, respondem todos os motoristas com quem ele fala.
passada mais de uma hora desde que o primeiro aclimação passou, passa o segundo. subimos. sentamos. e descubro que raul não sabia que estávamos num sábado, nem que o dia seguinte seria um domingo.
tomo cuidado para não me intrometer, mas sugiro que ele não ande por pinheiros no domingo. ele me conta que veio visitar uma amiga, mas que no outro dia não virá. pergunto se mora sozinho, e ele me diz que sim.
enquanto o ônibus segue pela avenida paulista, raul vai reclamando que o farol demora para abrir. e que o dia foi muito cansativo, que ele está exausto.
eu estava quase duas horas atrasada para a minha reunião, mas estava feliz porque achei que a única coisa que eu poderia ter feito era ficar com o raul até ele entrar no ônibus. ele dizia muitas e muitas vezes "que bom que a senhora está aqui comigo".
eu sempre penso no meu pai e na minha mãe quando encontro uma pessoa velha e que precisa de ajuda. não é nenhum esforço, eu só acho a coisa mais natural do mundo ajudá-los. são ajudas mínimas, como entrar no ônibus com o raul. mas me parece que para quem recebe a ajuda é algo grande ou, se não, pelo menos reconfortante. "a senhora tá me dando força. se eu estivesse aqui sozinho, eu ia estar desesperado", ele repetiu inúmeras vezes enquanto o sol batia nos nossos rostos e nos concentrávamos para ver se o aclimação estava se aproximando.
"que loucura, que loucura", dizia ele.
a loucura prossegue. estou em casa, com a geladeira cheia de comida para não precisar sair até pelo menos quarta-feira.
"bem, vamos esperar." o raul falava o óbvio. que agora eu repito. "bem, vamos esperar". o carnaval vai passar.


posso tirar uma foto com o senhor? "claro"

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