ela amava as Sextas-feiras Santas

ela amava as Sextas-feiras Santas. sempre inventava programas. viagenzinhas.
dizia que colher macela antes do sol nascer era auspicioso (ou a macela era especial, não lembro). ela também gostava de fazer simpatia para se ver livre de verrugas. uma vez eram umas na mão da minha irmã. tinha que ser na Sexta-feira Santa, antes de o sol tocar a terra. saíamos de casa cedíssimo, e parávamos na beira da estrada, quando ainda tinha sereno sobre as plantas.
ela era muito divertida. sempre tinha ideias. na páscoa, sempre escondia todos os chocolates.
e o que eu amava nas sextas antes da páscoa era comer bacalhau à gomes de sá. toda Sexta-feira Santa tinha. só não tinha bacalhau quando íamos viajar.
a lembrança que eu tenho é que sempre tinha um pouco de caos que antecedia o dia santo. ela esquecia de comprar o bacalhau, ou se comprava esquecia de pôr na água para dessalgar. o estresse das quintas que antecediam essas sextas ora envolvia a empregada, ora envolvia o meu pai. mas o bacalhau saía. sempre à gomes de sá.
demorou muitos anos para eu começar a ficar confusa com a relação entre bacalhau e jejum. se na sexta santa tínhamos de jejuar, por que então comíamos um dos pratos mais maravilhosos do ano?
fomos crescendo, ela foi ficando mais e mais voltada às atividades e às crenças da Igreja, até que as sextas santas deixaram de ser festivas. ela ficava nervosa, brigava com o meu pai - as duas ou três vezes em que ela fez as malas e ameaçou nos deixar foi sempre nesse dia - e sobrava pra nós, sempre.
meu irmão, adolescente, um dia pediu macarrão à bolonhesa (ou seria um caneloni com presunto?) num restaurante de massas em gramado, na serra gaúcha. ela ficou furiosa, e meu irmão, satisfeito. meu pai não dizia nada, só ficava pálido e devia fazer uma cara de quem ia morrer de ataque cardíaco, mas eu não percebia na época.
depois ela começou a implicar com a sobremesa - era um dia de jejum, nada de sobremesa. muito menos chocolates de gramado. quando eu já bebia vinho, ela passou a implicar com a ingestão de álcool. nos últimos anos da vida dela ela implicava com a nossa alegria, e acho que com a nossa existência também. tudo era pecado numa Sexta-feira Santa.
como o estresse era grande, exagerado, o fim de semana acabava sendo indigesto. eu acho que meus irmãos e eu éramos crianças dóceis. criados para sermos bem educados, comer de boca fechada, limpos, vestidos com asseio e capricho. não acho que dávamos trabalho. mas o clima era sinistro: aquela mulher infeliz, que explodia feito uma panela de pressão "quando algo dá errado", mas nunca sabíamos quando algo ia dar errado. ela gritando com a gente, e meu pai olhando com a cara pálida e o olhar perplexo, como se fizesse parte do sagrado matrimônio dele aguentar os chiliques da mulher.
eu me acostumei a não comer carne vermelha nesse dia. assim como você se acostuma a sempre pintar as unhas de vermelho e, se um dia pinta de outra cor, acha estranhíssimo. os ensinamentos católicos de toda a minha infância e juventude não fazem o menor sentido pra mim. são só hábitos. 
saí para comprar ovinhos de chocolate ontem. e tive uma ideia que me pareceu encantadora. farei uma torta de chocolate festiva - como toda torta me parece ser. massa de chocolate, recheio de doce de leite e cobertura de creme de chocolate amargo. e ovinhos de chocolate para enfeitar.
eu sempre escondo os ovos. antes de ter filhos, escondia os ovos de quem estivesse comigo no domingo: meus pais, um namorado, amigos. este ano comprei um pequeno ovo pra mim, coisa que havia anos eu não fazia.



fui andar e o dia tão lindo tinha cara de sexta santa. um feriado bom, que todos em casa precisávamos. minhas amigas foram viajar, não farei nenhum almoço para mais do que três pessoas. esse é o lado bom de estar num momento vamos-quitar-todos-os-boletos-atrasados-desde-2018. você se concentra. foca no que é importante. tem insights. tem sonhos claros como esta sexta ensolarada. e aprende a sentir-se feliz ONDE quer que esteja.
(lembrei de R. me contando das dores horríveis que tinha no centro do peito num determinado momento da vida dele. e acabei lembrando do piano de cauda que eu deixei de carregar nas costas depois de um retiro de silêncio no sul da bahia. no fim, a vida tem muito disso: deixar pra lá o que não importa, deixar de carregar pesos desnecessários, deixar de olhar pro lado e se distrair pra olhar pra frente e enxergar o que está acontecendo e apreciar. como estou apreciando esta sexta santa e vou apreciar muitíssimo fazer uma torta de chocolate)
sigamos.


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