praticando se jogar do trampolim

pablo virou a cabeça pra trás, tentando fazer cara de preocupado.
- ah, os passageiros sentam e o cinto acaba entrando e fica embaixo do banco.
ele falou isso com a propriedade que um motorista da 99 trabalhando na praia de botafogo, no rio de janeiro, falaria. eu fiquei intrigada, lembrando do outro motorista da 99 que tinha me dito algo na mesma linha: ah, a gente manda lavar o carro e os caras enfiam o cinto pra dentro do banco.
hum, pensei, que coisa, carros que transportam passageiros o dia inteiro no rio de janeiro têm o mesmo problema.
- a senhora não é do rio não, é?

vista da sala de reunião 

ãããã, claro que não. meu sotaque de gaúcha não engana ninguém, muito menos o pablo, que nos 15 minutos em que dirigiu para me levar do escritório do meu cliente até o aeroporto santos dumont me contou sobre roubos de roupas e mochilas nas academias smart fit, fato que tinha levado a empresa a instalar armários do lado de fora dos vestiários, além de câmeras para monitorar o movimento; que gostava de café coado, principalmente o colombiano, que alguém tinha trazido de presente pra ele, mas de café espresso ele não gostava, "nem o da kopenhagen"; que ele tinha morado com uma tia quando brigou com a mãe dele, e na casa da tia que não era tia mas mãe de um amigo de longa data tinha uma gaúcha; que ele identificava meus conterrâneos por causa do bah, no caso de homens, e por causa do né? no fim das frases, no caso das mulheres; que ele considerava os gaúchos um povo muito, muito educado; que cariocas eram desbocados e isso chocava os vindos de outros estados; que ele não usava cinto de segurança no banco de trás porque graças a esse hábito ele tinha se salvado em um acidente de carro no qual o primo, que também não usava cinto e também foi arremessado, como ele, pra fora do carro, morreu.
e então eu me dou conta de que no rio não só é comum não usar cinto no banco traseiro como motoristas não têm cintos à disposição dos passageiros.
eu gosto do rio cada vez mais. acho encantador chegar na cidade maravilhosa e ver que é possível viver de um jeito bem mais relaxado que o meu. gosto particularmente do eaííííí, que brota das bocas dos cariocas lindamente. eu quero aprender a falar assim e aprender a viver assim. é como um caso de amor, quando você conhece uma pessoa e, a cada dia que a encontra, gosta um pouquinho mais dela.
eu tinha ido ao rio três dias antes de entrar no carro do pablo. quanto mais você viaja, mais fácil fica viajar. e como eu tenho viajado bastante ao longo da minha vida, partir vai ficando mais fácil - arruma-se a mala em minutos, leva-se só o necessário, os filhos ficam bem, eu também, a casa fica arrumada e todos sobrevivem.
mas desta vez eu tive um insight no carro que me levava da minha casa ao aeroporto, cedo de manhã, quando o sol ainda nem tinha aparecido no céu. eu ia quietinha no banco de trás, naquele mar de automóveis que são as pistas expressas das avenidas marginais de são paulo, quando me dei conta de que me sentia saltando de um trampolim.
quando você está na ponta do trampolim, criando coragem para saltar, você não tem ideia de como vai cair na água. você salta com um frio na barriga. e não sabe se o mergulho será suave e indolor ou barulhento e dolorido a ponto de deixar um vermelhão na pele que se chocou de forma desastrada contra a água. tampouco é possível saber se o mergulho será profundo e bonito ou se será profundo e desagradável, com água entrando no nariz, seu medo tomando conta de todas as células do seu corpo, ou se você nem irá fundo na água, ficando os músculos tão contraídos que o seu corpo pouco afunda. você vai viajar e ficam os filhos; o filtro de água vazando que o porteiro ficou de consertar; a faxineira que viria; as aulas dos filhos, um com provas, o outro na escola em que não há provas; a comida que você cozinhou pra eles na geladeira; as frutas na gamela sobre a mesa da cozinha; o saldo negativo no banco. tudo fica como está, e você vai. se atira na água. você não sabe que o seu voo terá overbooking e que você andará pra cima e pra baixo do aeroporto de congonhas ao lado de um simpático francês até ser acomodada no voo seguinte; nem quantos pablos ansiosos e sem cinto de segurança para o passageiro vai encontrar. também não sabe a cor do paredão que fica na frente da janela do seu quarto do hotel. muito menos que o cristo estará azul, para lembrar do dia mundial do autismo.

o cristo azul para quem conseguir enxergá-lo numa foto sem foco


e essa sensação, de frio na barriga por estar indo viajar mesmo estando sentada em um banco traseiro de um carro, me fez lembrar da conversa que eu tinha tido com o meu mestre. ter filho também é saltar do trampolim.
planejem o que quiserem, poupem o dinheiro para a universidade, marquem a data do parto para coincidir com previsões auspiciosas da numerologia. até casar a gente casa pra ter filhos, sonhando com um mundo que só existe na cabeça da gente.
ter filho é igual viajar. você fecha os olhos, tapa o nariz e se atira da ponta do trampolim. não adianta fazer previsões, planejar, organizar. tudo pode acontecer. 
e essa é a graça.

esse é o bilhete de embarque com o qual o francês e eu entramos no avião

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