a minha longa história com o dr. kong
isso foi muitos anos atrás. talvez uns 20. ou quase isso.
eu morava sozinha. depois de me separar, tinha morado um tempo sozinha, outro tempo em uma casa no meio do mato com uma amiga, e finalmente estava de volta à cidade cinza, também conhecida como são paulo. estava sozinha e feliz.
eis que um dia acordo e não consigo me mexer.
quando isso acontece pela primeira vez, e nessa primeira vez você mora sozinho e é jovem, é totalmente desesperador. eu comecei a chorar.
não lembro se chorei por poucos ou muitos minutos, mas lembro que saí da cama engatinhando. devagar cheguei ao banheiro, tomei banho e me aprontei, acho que desesperada, para ir pro trabalho. nessa época eu trabalhava na Gazeta Mercantil, que já tinha sido um bom jornal, mas já estava começando a não pagar os salários no dia em que o pagamento deveria ter feito - um ou dois anos depois o jornal fechou. a redação ficava na zona sul de são paulo, um caminho longo, mas rápido desde o meu pequeno apartamento, que ficava em pinheiros.
20 anos atrás não usávamos celular. quer dizer, algumas pessoas usavam, outras não. e essas outras eram a maioria. minha dor era tão grande que eu achei que chegando ao jornal eu teria mais ajuda do que ficando em casa. um pensamento sinistro, mas talvez o melhor que eu podia ter naquele momento.
a chefe da pauta era a dinorah, uma ruiva simpática e baixinha. eu devo ter entrado na redação com cara de criança perdida no parque. contei minha triste história pra dinorah, e ela me deu uma pauta bem tranquila e disse "faz esse texto e vai embora". e me falou de um médico chinês que fazia massagem e acupuntura, acho que tanto ela quanto o marido eram pacientes dele.
liguei, marquei, fiz minha matéria rapidinho e fui pro consultório do chinês. dr. kong ling shi. ele me sovou à grande - como me sovaria inúmeras outras vezes ao longo das quase duas décadas em que ele cuidou de mim. e me disse três coisas: que a dor aumentaria e, por isso, eu deveria fazer repouso no dia seguinte, que eu não tomasse remédio e que voltasse dois dias depois.
saí de lá me sentindo feliz e miserável. eu tinha de dirigir o meu carro até a minha casa. mas tinha a impressão de que a minha dor passaria - ainda que deveria levar no mínimo dois dias, como ele tinha me alertado.
em casa, liguei para uma amiga, que se prontificou a cuidar de mim. no dia seguinte, peguei um táxi e fui pra casa dela, onde passei o dia inteiro deitada no sofá. quando você sabe que a dor vai piorar, mas alguém está cuidando disso, você dá conta da dor. e assim foi.
no dia seguinte ao repouso no sofá, voltei à consulta.
o dr. kong nunca aprendeu a falar português muito bem. na verdade, ele falava mal e porcamente. além disso, era um homem quieto. ou seja, era um tratamento em que ele usava as mãos e as agulhas, mas quase nenhuma palavra. pessoas ansiosas que querem nome para seus males nunca devem ter ficado felizes com o velho.
nas vezes em que eu perguntava por que estava com aquela dor, ele dava respostas tão completas como "estresse, né?", "muito trabalho" ou "cansaço". ponto final. e eu ficava feliz, porque ele não falava quase nada, mas sempre resolvia.
quando você conhece um médico como o dr. kong, você passa a não ter medo de ter dor. e isso não é uma figura de linguagem.
eu quebrei poucas partes do meu corpo. mas das três vezes em que quebrei dedinhos do pé, quem tratou foi o dr. kong. há 34 anos eu fui pela última vez no consultório de um ortopedista, para nunca mais voltar. ele fez um diagnóstico errado, o que incluiu o uso de medicamentos desnecessários, além de ânsias de vômito - eu tomava as cápsulas com leite, não lembro por quê, e quase vomitava.
depois disso, passei a usar os serviços de um acupunturista portoalegrense. e mais tarde me tratei com um japonês, que tinha ido parar na capital gaúcha com toda a família.
aqui em são paulo, o dr. kong virou o meu médico e o médico de muitos amigos meus. meu ex-marido se quebrou de moto na grécia e se tratou durante semanas com o kong. a mona se tratava lá e ganhou de presente uma sessão antes do casamento dela. a rafa se tratava lá e acabou levando o marido. o filho da santa nalva quebrou a perna e, depois de 60 dias engessado, descobriu que uma perna estava mais curta que a outra. o dr. kong arrumou, num tratamento que levou dois meses. minha mãe quando vinha me visitar adorava ir no dr. kong pra curar dores que a atacavam com as viagens. meu filho teve o local do furo da orelha marcado pelo velho e minha filha, também. o joão ainda foi lá tratar dores nas costas uma ou duas vezes.
no começo do ano passado, liguei pra marcar uma consulta. ting, a fabulosa chinesa mulher dele, atendeu, e disse que ele estava na china. que eu ligasse em dois meses.
liguei, mas ninguém atendeu, nem a secretária eletrônica, que tinha uma mensagem muito condizente com o dr. kong. era algo como "dr. kong, deixe recado". um frio na barriga, desses bem maiores que frio de montanha-russa, me gelou. fiquei alguns dias ligando. e nada.
então fui até a casa onde o dr. kong atendia e, acredito, morava. a placa em português e chinês não estava mais lá. no seu lugar, uma placa de aluga-se. era o que eu temia: ele tinha ido embora.
perguntei pros guardinhas da rua, e eles confirmaram. dr. kong tinha voltado pra china, tão quietinho como sempre tinha sido ao longo de todos esses anos em que me tratou. suas mãos de anjo forte são inesquecíveis. toda pessoa que nos cura é inesquecível. mas ele me curou inúmeras vezes.
engraçado eu ter demorado tanto para escrever sobre ele. a inspiração veio ontem, quando passei o dia deitada na cama com uma dor sinistra nas costas. estou seguindo as instruções sábias do velho: não tomar remédio da farmácia e ficar de repouso. mas agora, sem a sova e as agulhas, a dor é mais forte e demora mais pra passar.
eu morro de saudades dele. acho que ele estava doente, e escolheu morrer na terra em que nasceu. já tinha uns dois anos, no mínimo, que ele tossia muito. às vezes saía da sala, para tossir longe de mim, e quando passava, ele voltava.
...
hoje faz 22 anos que cheguei aqui nesta cidade cinza. vim com uma ou duas malas. meu marido já estava aqui. ficamos num hotel, até acharmos um apartamento e eu ir a porto alegre encaixotar a mudança. era um sofrimento conhecer esta cidade sozinha. ele trabalhava, enquanto eu procurava um apartamento pra gente sem saber em que bairro íamos morar, e um emprego, sem saber o que era longe, o que era perto, o que era bom, o que era ruim.
no fim, achei não só um apartamento e um trabalho, como um monte de amigos. tive dois filhos. e ainda descolei o dr. kong. um luxo.
eu morava sozinha. depois de me separar, tinha morado um tempo sozinha, outro tempo em uma casa no meio do mato com uma amiga, e finalmente estava de volta à cidade cinza, também conhecida como são paulo. estava sozinha e feliz.
eis que um dia acordo e não consigo me mexer.
quando isso acontece pela primeira vez, e nessa primeira vez você mora sozinho e é jovem, é totalmente desesperador. eu comecei a chorar.
não lembro se chorei por poucos ou muitos minutos, mas lembro que saí da cama engatinhando. devagar cheguei ao banheiro, tomei banho e me aprontei, acho que desesperada, para ir pro trabalho. nessa época eu trabalhava na Gazeta Mercantil, que já tinha sido um bom jornal, mas já estava começando a não pagar os salários no dia em que o pagamento deveria ter feito - um ou dois anos depois o jornal fechou. a redação ficava na zona sul de são paulo, um caminho longo, mas rápido desde o meu pequeno apartamento, que ficava em pinheiros.
20 anos atrás não usávamos celular. quer dizer, algumas pessoas usavam, outras não. e essas outras eram a maioria. minha dor era tão grande que eu achei que chegando ao jornal eu teria mais ajuda do que ficando em casa. um pensamento sinistro, mas talvez o melhor que eu podia ter naquele momento.
a chefe da pauta era a dinorah, uma ruiva simpática e baixinha. eu devo ter entrado na redação com cara de criança perdida no parque. contei minha triste história pra dinorah, e ela me deu uma pauta bem tranquila e disse "faz esse texto e vai embora". e me falou de um médico chinês que fazia massagem e acupuntura, acho que tanto ela quanto o marido eram pacientes dele.
liguei, marquei, fiz minha matéria rapidinho e fui pro consultório do chinês. dr. kong ling shi. ele me sovou à grande - como me sovaria inúmeras outras vezes ao longo das quase duas décadas em que ele cuidou de mim. e me disse três coisas: que a dor aumentaria e, por isso, eu deveria fazer repouso no dia seguinte, que eu não tomasse remédio e que voltasse dois dias depois.
saí de lá me sentindo feliz e miserável. eu tinha de dirigir o meu carro até a minha casa. mas tinha a impressão de que a minha dor passaria - ainda que deveria levar no mínimo dois dias, como ele tinha me alertado.
em casa, liguei para uma amiga, que se prontificou a cuidar de mim. no dia seguinte, peguei um táxi e fui pra casa dela, onde passei o dia inteiro deitada no sofá. quando você sabe que a dor vai piorar, mas alguém está cuidando disso, você dá conta da dor. e assim foi.
no dia seguinte ao repouso no sofá, voltei à consulta.
o dr. kong nunca aprendeu a falar português muito bem. na verdade, ele falava mal e porcamente. além disso, era um homem quieto. ou seja, era um tratamento em que ele usava as mãos e as agulhas, mas quase nenhuma palavra. pessoas ansiosas que querem nome para seus males nunca devem ter ficado felizes com o velho.
nas vezes em que eu perguntava por que estava com aquela dor, ele dava respostas tão completas como "estresse, né?", "muito trabalho" ou "cansaço". ponto final. e eu ficava feliz, porque ele não falava quase nada, mas sempre resolvia.
quando você conhece um médico como o dr. kong, você passa a não ter medo de ter dor. e isso não é uma figura de linguagem.
eu quebrei poucas partes do meu corpo. mas das três vezes em que quebrei dedinhos do pé, quem tratou foi o dr. kong. há 34 anos eu fui pela última vez no consultório de um ortopedista, para nunca mais voltar. ele fez um diagnóstico errado, o que incluiu o uso de medicamentos desnecessários, além de ânsias de vômito - eu tomava as cápsulas com leite, não lembro por quê, e quase vomitava.
depois disso, passei a usar os serviços de um acupunturista portoalegrense. e mais tarde me tratei com um japonês, que tinha ido parar na capital gaúcha com toda a família.
aqui em são paulo, o dr. kong virou o meu médico e o médico de muitos amigos meus. meu ex-marido se quebrou de moto na grécia e se tratou durante semanas com o kong. a mona se tratava lá e ganhou de presente uma sessão antes do casamento dela. a rafa se tratava lá e acabou levando o marido. o filho da santa nalva quebrou a perna e, depois de 60 dias engessado, descobriu que uma perna estava mais curta que a outra. o dr. kong arrumou, num tratamento que levou dois meses. minha mãe quando vinha me visitar adorava ir no dr. kong pra curar dores que a atacavam com as viagens. meu filho teve o local do furo da orelha marcado pelo velho e minha filha, também. o joão ainda foi lá tratar dores nas costas uma ou duas vezes.
no começo do ano passado, liguei pra marcar uma consulta. ting, a fabulosa chinesa mulher dele, atendeu, e disse que ele estava na china. que eu ligasse em dois meses.
liguei, mas ninguém atendeu, nem a secretária eletrônica, que tinha uma mensagem muito condizente com o dr. kong. era algo como "dr. kong, deixe recado". um frio na barriga, desses bem maiores que frio de montanha-russa, me gelou. fiquei alguns dias ligando. e nada.
então fui até a casa onde o dr. kong atendia e, acredito, morava. a placa em português e chinês não estava mais lá. no seu lugar, uma placa de aluga-se. era o que eu temia: ele tinha ido embora.
perguntei pros guardinhas da rua, e eles confirmaram. dr. kong tinha voltado pra china, tão quietinho como sempre tinha sido ao longo de todos esses anos em que me tratou. suas mãos de anjo forte são inesquecíveis. toda pessoa que nos cura é inesquecível. mas ele me curou inúmeras vezes.
engraçado eu ter demorado tanto para escrever sobre ele. a inspiração veio ontem, quando passei o dia deitada na cama com uma dor sinistra nas costas. estou seguindo as instruções sábias do velho: não tomar remédio da farmácia e ficar de repouso. mas agora, sem a sova e as agulhas, a dor é mais forte e demora mais pra passar.
eu morro de saudades dele. acho que ele estava doente, e escolheu morrer na terra em que nasceu. já tinha uns dois anos, no mínimo, que ele tossia muito. às vezes saía da sala, para tossir longe de mim, e quando passava, ele voltava.
...
hoje faz 22 anos que cheguei aqui nesta cidade cinza. vim com uma ou duas malas. meu marido já estava aqui. ficamos num hotel, até acharmos um apartamento e eu ir a porto alegre encaixotar a mudança. era um sofrimento conhecer esta cidade sozinha. ele trabalhava, enquanto eu procurava um apartamento pra gente sem saber em que bairro íamos morar, e um emprego, sem saber o que era longe, o que era perto, o que era bom, o que era ruim.
no fim, achei não só um apartamento e um trabalho, como um monte de amigos. tive dois filhos. e ainda descolei o dr. kong. um luxo.
ai tita, lembro como se fosse hoje de você me contando essa história. você (e dr. kong) são demais!
ResponderExcluir<3
ExcluirConheci Dr Kong. Tive um problema de dor nos joelhos e fui a uma clínica de Ortopedia, nos Jardins e o médico, ao analisar a radiografia, me disse para não mais praticar Yoga, pois estava com Condromalassa (desgaste de Cartilagem). Parei por cerca de 10 a minha prática. Daí resolvi consultar um professor de Ortopedia que, junto com outros ortopedistas, me mandou fazer uma tomografia. Fiz! Com o resultado em mão voltei ao hospital onde atendia e ouvi uma série de conclusões desencontradas: pode ser menisco, pode ser plica sinovial, pode ser ..., . Enfim, marcou uma cirurgia. Cheguei ao hospital às 7 h. Fui até o centro cirúrgico, mas tive uma sensação ruim, uma intuição de que algo estava errado. Dei meia volta e fugi. Cinco anos depois sempre com a dor intermitente, levei minha mãe para se tratar com o Dr Kong, mas para minha surpresa quando subi o primeiro degrau na clínica dele meu joelho fez um ruído. Dr Kong imediatamente me disse: TENDON! Ele me levou a uma das salas e colocou as agulhas no joelho. Em seguida, avisou: em 5 sessões isto vai passar. Na terceira já não tinha mais nada. Depois disso não tive mais notícias do Dr Kong. Anos depois minha mãe teve fortes dores na coluna. Chamei a emergência do Convênio. Apareceu a minha casa um jovem médico coreano, clínico formado na USP. de Ribeirão Preto. A certa altura ele me perguntou se gostava de Acupuntura. Eu respondi afirmativamente, pois, meu pai era médico e admirava a Medicina Tradicional Chinesa. Chegou a tentar um movimento para que se aplicasse a acupuntura como substituta dos anestésicos químicos, como hipoalgesia, mas infelizmente, faleceu aos 64 anos. Dr. Sang Hyun Park fez na hora uma sessão de acupuntura nela e me disse: em 10 sessões estará curada”. Em cinco sessões já estávamos eu, ela é meu irmão passeando de carro. Dr Sang atende na Vila Mariana e na Água Fria. Vou voltar a sua clínica brevemente pois estou com dores na coluna. Ele é ótimo.
ResponderExcluirque bela história! vou procurar o Dr Sang. gratidão por compartilhar!
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